Levantamento exclusivo mostra ainda que 54% das vítimas são negras e, em 34% dos casos, o sexismo foi a motivação. Fundadora do Coletivo Feminista Helen Keller, Carolini Constantino diz que os instrumentos atuais de acolhimento e prevenção à violência contra a mulher não são suficientes para proteger e atender as mulheres com deficiência
O ano de 2020, primeiro da pandemia de covid-19, apresentou uma queda de 19% de casos em relação a 2019. Para Carolini Constantino, assistente Social, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e fundadora do Coletivo Feminista Helen Keller, esse dado não significa que a violência sexual contra mulheres com deficiência diminuiu nesse período, mas que pode ter subnotificação devido ao isolamento social e outras medidas de restrição, como já foi identificado em outras situações de violência contra a mulher durante a pandemia.
“Me arrisco a dizer que provavelmente tenha aumentado o número de mulheres com deficiência que foram violentadas e abusadas por estarem em situação de vulnerabilidade. No entanto, com a necessidade do isolamento social, muitas delas não encontraram alternativas para denunciar, pois tiveram que ficar em casa, isoladas socialmente, sem a oportunidade de se deslocar até alguma delegacia”, destaca a pesquisadora.
Segundo Constantino, o fechamento de instituições de reabilitação de saúde e até mesmo de escolas e universidades fez com que a possibilidade de denúncia ficasse ainda mais difícil. “Sem falar que, muito provavelmente, aquelas mulheres que tinham acesso a um telefone ou à internet não se sentiram seguras para procurar ajuda, pois seu agressor poderia estar mais próximo ainda devido às regras de distanciamento social e outros fatores da pandemia. Essas situações fizeram com que as denúncias diminuíssem”, acrescenta.
A maior parte dos casos de violência contra as mulheres com deficiência ocorre no âmbito doméstico e familiar, sendo que o agressor geralmente é algum familiar (20%), pessoa próxima (27%) ou companheiro (a) e ex-companheiro (a) (11%), de acordo com o Sinan. Na maior parte dos casos, os homens foram os autores (91%) e, assim como em outros tipos de violência, as mulheres negras são a maioria das vítimas (54%).
Dados da Organização das Nações Unidas mostram que uma a cada cinco mulheres em todo o mundo tem algum tipo de deficiência. O relatório pontua que embora a violência afete mulheres em geral, mulheres e meninas com deficiência correm um risco desproporcional de violência devido a fatores relacionados à discriminação sistêmica e ao estigma.
De acordo com o guia “Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania”, do Coletivo Helen Keller, que reúne textos informativos para mulheres com deficiência, “as mulheres com deficiência estão em situação de dupla opressão, ora porque os estereótipos de passividade, fragilidade e dependência são atribuídos à feminilidade e à deficiência, ora porque os papéis atribuídos às mulheres, como por exemplo, ser mãe, esposa e dona de casa, são inflexíveis e excluem as mulheres com deficiência”, o que impacta diretamente na violência de gênero que sofrem.
Fetiche e falta de acolhimento
Priscila afirma que a violência sexual contra mulheres com deficiência também carrega nuances de fetiche em relação ao corpo com deficiência, provocando agressões que podem começar com uma situação de abuso físico, mas que acabam por desencadear diversas violências psicológicas – e que se repetem todos os dias. Ela conta que nunca foi encorajada a fazer uma denúncia formal contra os abusos que sofreu.
“Eu tenho uma ampla rede de apoio, faço terapia, mas nunca denunciei. Acho válido, mas acho que exige muita força para falar, reviver a história e enfrentar um sistema judiciário que não está a nosso favor e exige situações em que as pessoas muitas vezes não se sentem encorajadas a enfrentar”, explica.
Para Carolini Constantino, os instrumentos atuais de acolhimento e prevenção à violência contra a mulher não são suficientes para proteger e atender as mulheres com deficiência. Ela destaca que é comum que as mulheres sofram com capacitismo (nome da discriminação contra pessoas com deficiência) dos responsáveis pelo acolhimento, falta de acessibilidade comunicacional para mulheres com deficiência auditiva ou visual e arquitetônica para as mulheres com deficiência física nas delegacias.
“Raramente vemos uma mulher com deficiência nas campanhas de combate à violência contra mulher, geralmente não há acessibilidade (local com acesso, intérprete de libras e audiodescrição) nos eventos nem materiais que falem sobre isso, e não nos convidam para participar desses momentos levando nossas pautas”, diz a fundadora do Coletivo Feminista Helen Keller.
Em 2019, a Lei 13.836/19, tornou obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou familiar e determinou que o registro policial deve informar se o ato de violência resultar em sequela ou em agravamento de deficiência preexistente.
Além disso, o Projeto de Lei 4343/20 inclui a mulher com deficiência no artigo 2ª da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que traz exemplos de possíveis fatores diferenciadores entre as mulheres, para que não reste dúvida de que todas as mulheres têm o direito de viver sem violência. O objetivo é dar mais visibilidade às mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade. A proposta, dos deputados Eduardo da Fonte (PP/PE) e Tereza Nelma (PSDB/AL), está aguardando parecer do relator na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD).
Números que ainda invisibilizam
Na Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE), dados indicam que o Brasil tem, aproximadamente, 17 milhões de pessoas vivendo com algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8% da população com mais de 2 anos. Entre elas, pessoas com deficiência física nos membros inferiores (3,8%), com deficiência visual (3,4%) e com deficiência auditiva (1,1%). Já 2,5 milhões de pessoas – 1,12% da população com deficiência – apresentam deficiência intelectual. Em relação a gênero, mulheres compõem a maioria das pessoas com deficiência – 10,5 milhões, contra 6,7 milhões de homens.
Mesmo com mais de 10 milhões de mulheres com deficiência, o Brasil ainda enfrenta desafios para garantir canais de denúncia acessíveis a elas e, após o atendimento, compartilhar números que poderiam contribuir para o melhor mapeamento dos casos.
Principal canal de denúncia para casos de violações, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos oferece o Disque 100 e o Disque 180 – este voltado exclusivamente para ouvir mulheres vítimas de violência.
Além de ter passado por diversas mudanças de atendimento nos últimos dois anos – como a centralização do Disque 100 e do Disque 180 em um mesmo canal de denúncias – o serviço passou por diversas reformulações das categorias de violência, não permitindo, assim, uma comparação anual dos avanços ou quedas de denúncias.
Só no primeiro semestre de 2020, das 264 denúncias, 243 estavam relacionadas a situações de violência sexual, o que representava 92,39% dos casos relatados por mulheres com deficiência que foram notificados pelo canal. No entanto, os números das denúncias revelam mais subnotificações do que indicativos reais – já que estão aquém das notificações do próprio Sinan. E revelam como monitorar dados estatísticos sobre violência contra mulheres com deficiência passa por desafios que se somam aos já encontrados para entender a violência de gênero no Brasil.
O momento da denúncia, ainda considerado pouco acolhedor para as mulheres, acaba apresentando outras dificuldades para vítimas com alguma deficiência, o que as distanciam ainda mais de uma rede de acolhimento e proteção.
Para a professora de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Regiane Lucas de Oliveira Garcêz, mulheres com deficiência enfrentam uma somatização de problemas no momento da denúncia que passam por questões de infraestrutura dos atendimentos nas delegacias, ausência de capacitação dos profissionais que atendem e questões de cunho moral que inibem as vítimas – que, para ela, enfrentam um tratamento ainda mais infantilizado.
“A comunicação é algo que pode afetar de várias formas o momento da denúncia. Primeiro, porque órgãos públicos de segurança pública têm dificuldade para disponibilizar profissionais que consigam conversar em língua de libras para pessoas surdas ou até mesmo acompanhar mulheres com deficiência visual que podem falar, mas também exigem uma comunicação especializada. Outro ponto é que as mulheres são afetadas pela invisibilização da própria sexualidade, como se não pudessem ter direito aos seus corpos e, quando enfrentam uma situação de abuso, são tão culpabilizadas quanto as mulheres sem deficiência já o são, com o agravante desse olhar de que elas estão em um corpo que precisa ser consertado aos olhos dos outros”, explica.
Consultora de políticas públicas para atenção a mulheres com deficiência, Garcêz destaca que o momento da escuta costuma ser um dos maiores desafios para a capacitação de quem atende vítimas de violência – e que pode até mesmo fazer com que a vítima deixe de receber proteção após a denúncia.
“Quando atendemos uma mulher com deficiência, muito mais importante do que escutar o que aconteceu, é entender de onde ela vem, qual é o grau de dependência que ela tem da família e até mesmo do agressor, questões que por vezes são deixadas de lado e que poderiam ajudar para que o dado não pare na denúncia. Pois esse dado precisa se transformar em rede de apoio especializada, o que quase sempre é algo que não está acessível para essas mulheres”, alerta.
Por Agnes Sofia Guimarães e Vitória Régia da Silva para o portal Gênero, Número