Além da dificuldade de provar as denúncias, vítimas enfrentam micro agressões que não são reconhecidas como violências em ambientes de trabalho. Para juíza, reforma trabalhista de 2017 tornou ainda mais complicado levar esses casos à Justiça
Há vinte anos, a lei contra o assédio sexual no trabalho entrava em vigor. No entanto, vítimas precisam superar diversos obstáculos para levar os casos de assédio sexual à Justiça, o que acaba muitas vezes as desencorajando. Levantamento da Gênero e Número mostra que, entre 2017 e 2020, de 16.278 processos relacionados a casos de assédio sexual que foram julgados em primeira instância na Justiça do Trabalho, apenas 224 terminaram como procedentes — ou seja, as autoras, ou as vítimas, tiveram suas denúncias totalmente reconhecidas. Isso representa 1% dos casos.
No mesmo período, 41% dos casos terminaram em conciliação, 10% foram julgados improcedentes e 35% procedentes em parte — a vítima teve alguma de suas demandas reconhecidas no processo, mas não conseguiu, totalmente, o reconhecimento de que sofreu assédio sexual.
Para a Juíza do Trabalho Lisandra Lopes, provar o assédio acaba sendo um dos maiores desafios para as vítimas.
“O assédio é praticado de maneira furtiva, escondida. É muito difícil a vítima contar com documentos e testemunhas. Hoje temos uma grande vantagem: a possibilidade de prints em mensagens de Whatsapp e a gravação de conversas [observando que a gravação pelo interlocutor é permitida, segundo a jurisprudência dominante]. Ainda assim, não é sempre que se consegue essa prova”, explica.
A juíza também acredita que a oscilação negativa de casos novos a partir de 2017, na Justiça do Trabalho, pode ter relação com a aprovação da última reforma trabalhista — que, segundo ela, transformou-se em um mecanismo de medo para as vítimas em processos motivados por diversas causas, incluindo assédio sexual. Se em 2017 foram 5.171 casos novos de assédio sexual, 2020 terminou com a entrada de apenas 2.455 casos.
“A reforma implicou uma queda geral nos números de processos trabalhistas. E não podemos ser ingênuos e pensar que isso se deu porque agora a lei é cumprida com mais frequência. A reforma simplesmente acabou com uma série de direitos, dificultou o acesso à justiça gratuita, trouxe ônus financeiros mesmo para os beneficiários da gratuidade, incluindo a figura dos honorários de sucumbência, a serem pagos pelo trabalhador ou pela trabalhadora se perderem total ou parcialmente o caso. Em resumo, entrar na Justiça pode custar caro. E além do custo emocional e do risco de uma demanda que apresenta todas estas dificuldades, há ainda o risco financeiro”, lamenta.
Criminalização de microagressões
Legalmente, não faltam ferramentas para que o assédio sexual seja reconhecido, e combatido pela Justiça. O assédio sexual virou crime em 2012, com a reforma do Código Penal, no artigo 216-A: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. A pena prevista é de um a dois anos de detenção.
Além disso, a Lei 14.188/21 estabeleceu o tipo penal de violência psicológica contra a mulher, que também pode ser aplicado a violências no ambiente de trabalho. A pena prevista é de seis meses a dois anos de detenção. A lei criminaliza o “dano emocional à mulher que […] vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização”.
Mesmo assim, o combate a esse crime é difícil, e muitas vezes as vítimas também estão no sistema que não deveria tolerá-lo. A Justiça é um ambiente ainda predominantemente masculino: dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que o Poder Judiciário conta com 62% de sua magistratura composta por homens. Pesquisa do Datafolha, divulgada no primeiro semestre de 2021, indica que um terço das advogadas brasileiras já foram vítimas de assédio sexual. Advogada com enfoque em Direitos Humanos e Diversidade, Roberta Soares** é uma delas.
“Nas duas vezes em que fui assediada sexualmente por superiores, fiz a denúncia para os chefes das áreas — e em um dos casos, para o dono do escritório — e nada foi feito. Houve um tradicional discurso de surpresa com o ocorrido e a promessa de que medidas seriam tomadas. Estes homens continuam a ocupar cargos de liderança e suas imagens não foram afetadas. O mais dolorido de toda esta situação é que eu reportei internamente, nada foi feito, e neste meio tempo descobri que o que havia acontecido comigo já tinha ocorrido com outras mulheres nestes mesmos espaços”, relata.
“O assédio sexual está presente em todas as profissões, mas o que eu posso dizer com convicção é que ele está alastrado no meio jurídico e é, inclusive, naturalizado. É muito comum escritórios de advocacia darem um ‘jeitinho’ para não cumprir a lei, porque sabem que poucas pessoas terão recursos suficientes para denunciar”, completa Roberta.
O assédio sexual é um dos vários obstáculos que as mulheres enfrentam em sua carreira. Em pesquisa realizada pela empresa de aprendizagem internacional Pearson no Brasil, México, Índia e China, 87% das brasileiras consultadas afirmaram que questões sistêmicas de preconceito e discriminação atrapalham as mulheres na força de trabalho — entre as entrevistadas da chamada “geração Z”, dos nativos digitais, essa porcentagem chega a 95%.
O assédio sexual é um dos vários obstáculos que as mulheres enfrentam em sua carreira. Em pesquisa realizada pela empresa de aprendizagem internacional Pearson no Brasil, México, Índia e China, 87% das brasileiras consultadas afirmaram que questões sistêmicas de preconceito e discriminação atrapalham as mulheres na força de trabalho — entre as entrevistadas da chamada “geração Z”, dos nativos digitais, essa porcentagem chega a 95%.
A pesquisa também mostra como as mulheres sentem o impacto da pandemia da covid-19 em suas vidas. A maioria das consultadas nos quatro países acredita que a incerteza financeira causada pela pandemia colocou mais mulheres em situação de violência doméstica – no Brasil, 94% concordaram com essa afirmação -, assim como tornou mais difícil a independência financeira, segundo 75% das mulheres no Brasil.
Pequenas grandes violências
Na luta contra o assédio sexual, recentemente uma resolução do Tribunal Superior do Trabalho (TST) condenou um banco a pagar R$ 50 mil para uma funcionária que ouviu do seu superior que deveria usar roupas sensuais ao conversar com os clientes. O comentário, no entanto, surgiu dentro de um contexto em que já havia sinais de abuso por parte do chefe — de falas sexistas ao desmerecimento de suas competências profissionais.
Este caso, no entanto, é uma exceção, já que nem todos chegam ao TST, a instância superior da Justiça do Trabalho. E quando a denúncia fica no próprio ambiente da empresa, muitas vezes ela não é recebida com a seriedade que deveria, deixando as vítimas ainda mais fragilizadas.
É o que sente Luiza Cruz**, analista de marketing de uma multinacional que, ao ser contratada, passou por treinamento de combate ao assédio. Se ao chegar ela ficou empolgada com a preocupação da empresa em acolhê-la, Luiza logo se incomodou com o fato de não haver um canal específico para denúncias e com o protocolo adotado nestas situações, permitindo a exposição da identidade das denunciantes.
“Eu já me sinto inibida ao trabalhar em um ambiente que é predominantemente masculino, e em que tenho como superiores diretos executivos de destaque da empresa. Quando os instrutores do curso deram exemplos de situações em que a vítima teve que conversar com o agressor e ouvir um pedido de desculpas dele como uma resolução de conflito, fiquei me perguntando se eu conseguiria ter o mesmo emocional para enfrentar a situação”, conta.
Recentemente, a empresa especializada em gestão de recursos humanos Mindsight apresentou relatório sobre cultura do assédio nas empresas em que constata que apenas 25% das firmas brasileiras contam com canais formais de denúncia.
“A melhor solução é de fato criar esse canal de denúncias para que, formalmente, o funcionário saiba o que fazer. As empresas que contam com essas soluções com certeza já deixam claro que se preocupam com as pessoas e que a denúncia não vai prejudicar a carreira”, comenta o diretor da Mindsight, Taylan Toth.
No dia a dia, apesar de nunca ter se sentido constrangida pelos colegas, Luiza já observou situações em que teve dúvidas se estava diante de um caso de assédio sexual. “Já vi uma colega, que atua como liderança, receber elogios sobre roupa ou sobre o seu corpo, e fiquei realmente em dúvida se, no lugar dela, eu ficaria desconfortável com aqueles comentários, mas também não sei o que faria se fosse comigo”, conta.
Comentários inapropriados, e de cunho sexista, demandas exaustivas de trabalho e falas que desmerecem a capacidade profissional são algumas das situações elencadas pela pesquisadora da Fiocruz Cristiane Batista, especialista em violência do trabalho. Para ela, mais do que reconhecer pequenas agressões diárias como discriminações de gênero, é preciso levar para o centro do debate a ideia de que essas manifestações de assédio sexual violentam, diretamente, o direito das mulheres a relações de trabalho legítimas.
“Para entender o que é abuso sexual, primeiro é preciso reconhecê-lo como uma violência em que há intenção de fazer com que a relação de trabalho vá para esse cunho mais sexualizado. Isso significa ver como o corpo da vítima passa a ser colocado numa esfera que deveria ser apenas profissional. A partir desse reconhecimento, passamos a entender como comentários que parecem inofensivos não devem ser lidos como falas sem intenção, mas como violências para forçar esse outro tipo de relação de trabalho”, explica.
Em muitos casos, se o assédio sexual parece ter um ciclo de fases exatas – pequenas agressões que evoluiriam para cantadas, até intimidações mais graves para as vítimas -, Cristiane alerta que é importante entender as macrorrelações que acabam fazendo com que o assédio sexual nem sempre siga o mesmo roteiro.
“Estamos lidando com um tipo de violência que também aborda como o corpo da mulher é lido diferente de acordo com sua cor e situação social, e isso afeta como as vítimas vão reagir. É importante reconhecer as agressões que acontecem no plano micro, mas sem esquecer que, no macro, temos mulheres que vivem vínculos empregatícios mais precarizados do que outros, e isso vai impactar na forma como vão receber o assédio, já que umas precisam escolher entre a denúncia e manter a subsistência que o trabalho oferece”.
Advogada do Trabalho, Pietra Gomes destaca que, em muitos casos, mulheres negras, que na sociedade já estão mais sujeitas a uma sexualização maior dos seus corpos, também estão em situações de extremo risco social – o que as fazem escolher contra o quê vale a pena lutar. Em boa parte dos casos, vence a necessidade do provimento do lar.
“Estamos falando de mulheres que já são as que mais ocupam empregos precarizados. São chefes de família, muitas vezes as únicas provedoras do lar, então, diante de uma situação de abuso, fala mais alto a necessidade de manter aquele emprego”, explica.
Vítimas que não chegam à Justiça
Empregada doméstica desde os 8 anos, Zilda Menezes sempre teve como principal paixão a cozinha, mas por pressões financeiras e da vida, seguiu com a limpeza até que, nos anos 1990, seu marido conseguiu um emprego para ela como auxiliar de cozinha em um restaurante de Osasco (SP).
“Para mim aquele trabalho era uma oportunidade de enfrentar um problema que eu tinha em casa. Meu marido era muito ciumento e, até então, só conseguia trabalhar com limpeza porque era o mais próximo do controle dele. Mas quando ele arranjou esse trabalho na cozinha, comecei a ver que era um caminho para fazer o que eu queria, mas sem arranjar problemas em casa”, lembra.
Mas, em menos de uma semana de trabalho, ainda na fase de treinamento, seu chefe garantiu que ela permaneceria na vaga desde que saísse com ele, o que ela não aceitou.
“Já no dia seguinte, quando eu voltei lá, a filha dele me disse que não precisavam mais de mim. Não contei nada ao meu marido porque fiquei com medo que ele fizesse algo, ele era muito violento. Mas aquilo para mim foi revoltante porque é como se arrancassem um sonho, uma oportunidade. Foi como se eles tivessem direito de fazer e eu também fosse culpada por ter passado por aquilo”, lamenta.
No decorrer dos anos, Zilda ficou afastada da cozinha. Após a morte do marido, precisou criar os três filhos sozinha na periferia de São Paulo, em trabalhos domésticos em que também vivenciou diversos abusos, mas que, diante da necessidade de proteger a família e garantir o sustento, precisava enfrentar. Hoje, aos 54 anos, está voltando a cozinhar. Enquanto trabalha em uma função temporária no setor de alimentos de um projeto da prefeitura de Osasco, Zilda faz concursos para cozinheira em órgãos públicos.
Pesquisa da organização Think Eva, em parceria com o Linkedin, também destaca como mulheres ainda sentem o peso do assédio sexual no ambiente de trabalho. De acordo com o levantamento, 52% são mulheres negras. No setor de Comércio e Serviços, que reúne os maiores casos de denúncia relatados, segundo a pesquisa, as negras representam 60% de todas as mulheres que já sofreram assédio nessas atividades.
Vergonha e insegurança são os sentimentos que mais acompanham essas mulheres: entre as vítimas ouvidas no relatório, 54% das que se sentiram envergonhadas pela situações de assédio sexual eram negras. E 51% das participantes que demonstraram insegurança diante das situações eram mulheres com até dois salários mínimos – grupo majoritariamente composto por mulheres negras, que também já são as que têm menos acesso ao mercado de trabalho.
Redes de acolhimento e de proteção
Em junho de 2021, a ONU Mulheres, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificou a Convenção Nº 190 sobre Violência e Assédio, estabelecida pela OIT em 2019 e que, agora, é reconhecida como a primeira definição internacionalmente aceita sobre violência e assédio. Na América Latina, apenas o Uruguai, a Argentina e o Equador aderiram à convenção – um documento que contribui para a discussão sobre normas internacionais de trabalho e como elas podem ser aplicadas no contexto de cada país.
As organizações estipularam um ano para que os países apresentem adesão ao documento, propondo projetos que demonstrem o compromisso entre Estado, empresas e funcionários para diminuir práticas de assédio ou de violências baseadas em gênero no contexto de trabalho.
Diante de incertezas, inseguranças e falta de motivação para levar uma denúncia adiante, mulheres que passam a ocupar posições de liderança estão buscando reverter esse quadro. Depois de viver situações traumáticas nas empresas em que trabalhou, Roberta Soares abriu seu próprio escritório de advocacia, no qual estabeleceu uma política de tolerância zero para casos de assédio – inclusive na escolha de clientes.
“Já deixamos de atender um cliente porque ficou comprovado o comportamento assediador dele com uma fornecedora, o que não sabíamos quando assumimos o caso”, finaliza.
matéria de Agnes Sofia Guimarães, para a revista GêneroNúmero