Relatório da ONU denuncia violência contra candidatas negras no Brasil

Em uma carta confidencial enviada ao governo brasileiro, relatores e organismos da ONU denunciam a violência política contra deputadas, vereadoras e candidatas negras no Brasil. Segundo o documento, existe um esforço para tentar impedir que representantes de alguns grupos, incluindo mulheres afro-brasileiras, tenham acesso a cargos representativos e de tomada de decisão.

A carta foi redigida às vésperas de um período eleitoral que promete ser tenso no país e revela como peritos internacionais estão preocupados com a situação de opositoras e candidatas negras nas eleições. A denúncia, portanto, foi interpretada até mesmo dentro do governo brasileiro como um sinal de profundo mal-estar que existe hoje na comunidade internacional em relação às garantias democráticas no Brasil.

O documento de denúncia de doze páginas foi enviado no dia 29 de outubro de 2021. Ele é assinado pelos relatores Tendayi Achiume, Irene Khan, Victor Madrigal-Borloz, Reem Alsalem, Dominique Day e pela presidência do Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação contra Mulheres.

“Gostaríamos de expressar nossa séria preocupação com o aumento da violência política contra as mulheres afro-brasileiras e, em particular, as mulheres afro-brasileiras transgêneros”, alertaram os signatários da carta.

“Estamos seriamente preocupados que os persistentes ataques racistas, sexistas e transfóbicos contra as mulheres afro-brasileiras que são candidatas políticas, políticas ou que estiveram envolvidas em processos políticos constituam uma violação do princípio fundamental da não-discriminação no direito internacional dos direitos humanos”, apontam.

Alguns casos são citados. Mas os relatores admitem que eles não são os únicos. “Estamos preocupados com a segurança das vereadoras Benny Briolly e Ana Lúcia Martins e da deputada federal Talíria Petrone, que têm sido vítimas de constantes ameaças racistas, sexistas e transfóbicas, discursos e mensagens de ódio”, aponta a carta.

“Esta forma de violência política contra as mulheres afro-brasileiras e particularmente as mulheres afro-brasileiras transgênero revela o racismo estrutural e institucional difundido na sociedade civil brasileira, bem como as formas persistentes de discriminação intersetorial contra as mulheres e a discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero que continuam a impedir sua participação e representação política igualitária nos processos de tomada de decisão”, denunciam os relatores da ONU.

Na carta, os peritos descrevem com detalhes alguns dos ataques e ameaças sofridos pelas brasileiras que optam por buscar cargos públicos.

Segundo eles, em 2020, as eleições municipais foram também marcadas por atos de violência eleitoral e política. “Entretanto, a violência política não se limita às eleições e tornou-se uma questão mais geral, destinada a impedir que representantes de alguns grupos, incluindo mulheres afro-brasileiras e particularmente mulheres afro-brasileiras transgêneros, tenham acesso a cargos representativos e de tomada de decisão”, apontam.
“A violência política e eleitoral não é isolada e tem sido utilizada como uma ferramenta para obter e manter o poder, impedindo o acesso de grupos sub-representados, incluindo mulheres afro-brasileiras e mulheres LGBTI”, dizem.

Durante 2020, houve relatos de ameaças de morte e ameaças contra a integridade física e o livre exercício dos direitos políticos das mulheres afro-brasileiras, com ameaças específicas transfóbicas e discursos de ódio dirigidos contra mulheres afro-brasileiras transgêneros.

Os relatores citam uma pesquisa realizada durante as eleições de 2020 no Brasil. Nela, 98,5% das candidatas afro-brasileiras que participaram da pesquisa relataram ter sofrido pelo menos um tipo de violência política. “Foi estimado que 80% dessa violência ocorreu na internet, incluindo ameaças, bem como expressões racistas, sexistas e transfóbicas”, indica.

Em alguns casos, a violência incluiu comentários racistas motivados por motivos religiosos, visando candidatos negros que praticam religiões de origem africana. 43% das mulheres relataram ter recebido comentários e ataques racistas e sexistas.

Na pesquisa, 29,3% das entrevistadas identificaram seus agressores como candidatos opositores, indivíduos ou grupos militantes de partidos políticos opostos, em alguns casos adotando ideologias neonazistas, racistas ou anti-feministas.

Durante o período eleitoral, uma candidata afro-brasileira relatou ter sido agredida na rua por uma militante de um partido opositor, que disparou uma arma na sua direção.

As entrevistadas da pesquisa também expressaram que não confiam nos mecanismos de reclamação existentes e apenas 30% dos candidatos relataram os incidentes. Para os relatores da ONU, a realidade é que o fracasso em garantir adequadamente a segurança física das mulheres afro-brasileiras e o fracasso em efetivamente prevenir e remediar as ameaças de morte racistas, sexistas e transfóbicas e o assédio contra elas “poderia constituir uma violação dos direitos dessas mulheres sob as leis internacionais de direitos humanos”.

Os casos citados levantam “sérias preocupações de que as mulheres afro-brasileiras, particularmente as mulheres afro-brasileiras transgênero, estejam enfrentando violações de seus direitos à vida e à segurança física devido à violência política”.

Ataque vem de autoridades públicas e impunidade preocupa

Outro destaque ainda da denúncia é a constatação de que parte dos ataques contra essas mulheres ocorre por parte de autoridades públicas. “É especialmente preocupante que estes casos envolvam casos de discursos de ódio e assédio emanados de autoridades públicas e da aplicação da lei”, diz. “Observamos com preocupação a natureza racista, sexista e transfóbica das ameaças relatadas, em contravenção ao princípio fundamental da não-discriminação do direito internacional dos direitos humanos”, aponta.

Para os relatores, os casos de violência ilustram “a impunidade do discurso de ódio racista contra mulheres afro-brasileiras que são candidatas, eleitas e ativistas políticos”.

“Observamos especialmente que as acusações envolvem discursos de ódio perpetuados e instigados por atores públicos; sobre as informações recebidas, tais discursos de ódio fizeram com que mulheres afro-brasileiras politicamente ativas, e particularmente mulheres afro-brasileiras transgêneros, temessem por sua segurança física, restringissem suas atividades políticas, mudassem de residência, e até mesmo fugissem do Brasil”, denunciam.

Para eles, um princípio fundamental do direito internacional dos direitos humanos é que todas as pessoas tenham o direito de participar dos processos políticos sem discriminação. Para isso, os estados devem assegurar que as autoridades em todos os níveis de governo respeitem o direito dos membros das comunidades de pessoas de ascendência africana de participar das decisões que as afetam.
“Os Estados devem tomar medidas especiais e concretas para garantir às pessoas de descendência africana o direito de participar de eleições, votar e candidatar-se a eleições com base no sufrágio igual e universal e ter a devida representação em todos os ramos do governo”, insistem.

“É especialmente preocupante que o padrão de abusos mostre tanto funcionários públicos quanto atores privados usando violência, intimidação, ameaças e assédio para impedir ou limitar a participação política das mulheres afro-brasileiras”, denunciam.

“Na medida em que ameaças, discurso de ódio e medidas de proteção inadequadas impedem as mulheres afro-brasileiras, particularmente as mulheres afro-brasileiras transgêneros, de exercer plenamente seus direitos de participação política, expressão política e acesso à vida pública, há uma obrigação permanente do Estado de impedir tais violações tanto por parte de atores públicos quanto privados e de proporcionar reparação às partes afetadas”, recomenda a ONU.

Para os relatores, as atuais medidas em vigor para proteger as mulheres defensoras dos direitos humanos se mostram “ineficazes”. “Observamos com preocupação as alegações relativas à falta de clareza, instabilidade e incapacidade do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, especificamente quando se trata de casos de violência política racista, sexista e transfóbica”.

 

da coluna de Jamil Chade, UOL

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