Conquistado há 90 anos, voto feminino era visto como ‘risco à família’

Almerinda Farias Gama, em 1933, na eleição de representantes classistas para a Assembleia Nacional Constituinte

 

Foi o Código Eleitoral promulgado em 24 de fevereiro de 1932 que autorizou as mulheres brasileiras a votar. A conquista foi resultado de quatro décadas de uma luta intensa do movimento feminista, rechaçado por grande parte da sociedade do país. Apesar de ser um direito básico de todo cidadão, na época, o voto feminino era encarado como um “absurdo” e “desafiador da família”.

“Não é natural, não é equitativo, não é justo […] O homem até hoje reservou generosamente para si o mais pesado dos deveres cívicos”, disse o senador Tomás Rodrigues em 1927, durante os debates sobre o projeto de lei 102, que previa extensão do voto para mulheres. Cinco anos depois, o então presidente Getúlio Vargas dava a canetada sancionando a mudança eleitoral.

Mulheres já protestavam pelo direito ao voto desde a década de 1880, com o movimento sufragista, que se intensificou no final dos anos 1920. Como explica a pesquisadora Luciane Campos, doutoranda em história social pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), a resistência social ao voto feminino se organizou em várias frentes: pela imprensa, pelas instituições religiosas e pelos próprios parlamentares.

“Os contrários eram a maioria. Eles usavam muito como justificativa a ideia de que seria o fim da família se a mulher entrasse na arena política e diziam que a atividade não coincidiria com a natureza supostamente frágil da mulher”, aponta a pesquisadora.

Este, por exemplo, foi o argumento do então deputado Aarão Rebelo nas discussões para redigir a nova constituição de 1934, quando a consolidação do voto feminino na carta magna do país voltou ao debate: “Não quero ter a cumplicidade e o remorso de ter contribuído para a falência da bela e sagrada instituição da família, base da sociedade brasileira, alicerce da nossa nacionalidade, onde a mulher exercita seus penhores patrióticos educando e preparando as gerações futuras; não quero contribuir para a destruição do lar”, afirmou o parlamentar.

Disputas e pressão pelo sufrágio

A liberação do voto feminino começou a ser discutida pela primeira vez na Assembleia Nacional Constituinte de 1890, logo após a proclamação da República — momento que as feministas consideraram oportuno inserir esse direito em uma nova Constituição.

Os críticos mais ferrenhos eram senadores e deputados. Entre as figuras que mais se destacaram no período estava o deputado Lauro Sodré, que considerava a proposta de inclusão “anárquica, desastrada, fatal”. “É incontestável que, no momento em que nós formos abrir à mulher o campo da política, ela terá necessariamente de ceder diante da superioridade do nosso sexo nesse terreno”, chegou a proferir em plenário.

Naquele momento, o texto da Constituição não excluiu nominalmente as mulheres, mas a interpretação do judiciário descartava a participação feminina. “Eles acabaram por convencer não só seus pares, mas a sociedade. Inclusive muitas mulheres não viam com bons olhos a participação feminina na política. Isso acabou ganhando força, e o voto feminino não foi incluído explicitamente na Constituição”, afirma Campos.

Na década de 1910, surgiram projetos de lei que defendiam que mulheres pudessem votar, mas foram arquivados.

Em 1913, o jornal “A Noite” criticou o movimento de mulheres que reivindicavam o poder de escolher seus representantes. “As terríveis sufragistas têm praticado e continuam a praticar desatinos de que muito homem não seria capaz”, afirmou o jornal, em texto opinativo. O artigo fazia referência a um grupo de mulheres que, inspiradas nas sufragistas do Reino Unido, fazia ações diretas pelo voto. “Já não se limitam as fervorosas propagandistas a simples quebras de vitrines, mas assaltam e queimam edifícios, ameaçam como há poucos dias, a catedral de São Paulo, cometem atos de furioso vandalismo”.

Na década seguinte, em 1927, o Rio Grande do Norte saiu na frente: após a criação de uma lei estadual, concedeu o voto às mulheres e elegeu Alzira Soriano como a primeira prefeita da América Latina. Além disso, o estado também teve a primeira eleitora do país, a professora Celina Guimarães Vianna, na cidade de Mossoró.

O caso alvoroçou a sociedade no período, diz a historiadora Mônica Karawejczyk, autora do livro “A Mulher Deve Votar?” (Paco Editorial). “A partir daí, esse tema não saiu mais do contexto público e da imprensa”, afirma.

Com a posse de Getúlio Vargas, em 1930, muitas leis do país passaram a ser rediscutidas — inclusive o Código Eleitoral. A historiadora pontua que o primeiro rascunho feito pelos parlamentares, em outubro daquele ano, previu uma série de empecilhos para a participação das mulheres. O texto indicava que só poderiam se alistar como eleitoras mulheres solteiras e viúvas com “economia própria” ou “trabalho honesto”, ou então mulheres casadas com autorização o marido.

Com a pressão das sufragistas, o voto feminino foi conquistado em pé de igualdade com a redação dos homens, maiores de 21 anos e alfabetizados, com um porém: era facultativo, ao contrário do masculino, que era obrigatório. Com isso, o Estado passava a mensagem de que ainda era o homem, dentro de casa, que definia se a mulher votaria ou não.

A pesquisadora Luciane Campos ressalta outro efeito dessa regra: apenas mulheres que já estavam interessadas na política se aproximaram das eleições. “O Brasil desse período era um país agrário e pouco alfabetizado. Quem comparecia nas eleições eram habitantes das cidades”, diz. Somente em 1946 o voto se tornou obrigatório para todas as mulheres maiores de idade.

A inclusão de pessoas que não sabiam ler e escrever só aconteceu a partir de 1985, endossada pela constituição de 1988. Até então, porém, foram 40 anos a maior parte da população feminina foi deixada de lado.

“Se pensarmos proporcionalmente, os maiores excluídos do sistema eleitoral até 1985 eram mulheres, pois havia um contingente muito grande de analfabetas, principalmente entre mulheres negras e das periferias. Então elas ainda eram as grandes excluídas do processo, mesmo quando conquistaram o direito de voto.”

Em 1933, cerca de 1,3 milhão de pessoas compareceram às eleições. Estima-se que cerca de 20% do eleitorado do período era de mulheres e, em cidades como São Paulo, este índice pode ter chegado a 40%. Entre 183 candidatos na capital federal, oito eram mulheres. Neste pleito, Carlota Pereira, em São Paulo, foi eleita primeira deputada constituinte.

Nas últimas eleições, em 2020, as mulheres eram maioria dos eleitores: elas representavam 52,6% das mais de 147 milhões de pessoas aptas a votar naquele ano.

Resistência feminista

A imprensa foi usada para atacar a luta das mulheres, mas também foi usada como arma de convencimento pelas feministas. A professora Leolinda Daltro, por exemplo, produzia jornais em que publicava artigos defendendo o sufrágio feminino, como o “Tribuna Feminista” e “A Política”. Por sua militância, chegou a ser chamada de “mulher do diabo” por conservadores.

A cientista social Ana Prestes, doutoranda em história pela UnB (Universidade de Brasília) com pesquisa sobre o ingresso da mulher brasileira na política, destaca o papel de entidades bastante ativas nos debates, como a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundada há cem anos e com a cientista Bertha Lutz à frente.

Visita de integrantes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino ao Instituto Osvaldo Cruz

“A história, às vezes, é contada como se Getúlio Vargas tivesse assumido a presidência e, então, as mulheres ganharam o voto. Não é verdade. Houve um movimento feminino crescente ao longo da década de 1920 para que esse direito fosse conquistado. Além dessas atividades da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, elas faziam abaixo-assinados e muitas articulações políticas”, pontua.

A atuação das feministas que integravam a federação consistia desde lobby em festas de aniversários de políticos a panfletagem aérea. Em 1928, Bertha Lutz, Carmen Portinho e Amélia Bastos sobrevoaram o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, então no Rio de Janeiro, e lançaram, do avião, folhetos de propaganda ao voto feminino. Meses antes, Bertha já havia feito a mesma ação em cidades de oito estados, durante uma viagem com seu pai, o médico e cientista Adolfo Lutz.

A maioria das ativistas eram mulheres brancas, de classe média alta e com acesso a espaços de poder. “Elas estavam dispostas a mobilizar recursos e formas diferentes para chamar a atenção para a exclusão das mulheres na política”, diz a pesquisadora.

Mas a conquista do direito ao voto foi apenas um primeiro passo para a inserção das mulheres em um meio dominado por homens até hoje. “Se em 2022 as mulheres ainda têm dificuldade de se candidatar ou estar na política, imagine o que as sufragistas enfrentaram. Elas ouviam que eram mulheres de vida fácil, que não tinham nada o que fazer em casa, que não tinham marido ou filhos para se preocupar.”

Um dos exemplos mais emblemáticos da dificuldade que existe até hoje, segundo Prestes, é o fato de o Senado ter instalado um banheiro feminino só em 2016.

“Nas eleições de 2020, de todos os vereadores eleitos, só 16% eram mulheres. De todos os prefeitos, 12% eram mulheres. Se pensarmos bem, 90 anos depois, a gente ainda está fora da política”, diz a pesquisadora.

 

do portal Universa

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