“Que as vossas consciências não as deixem dormir enquanto lhes restar vida”

Excelentíssimas juíza Joana Ribeiro Zimmer e promotora Mirela Dutra Alberton, venho por meio desta contar-lhes uma passagem da minha vida enquanto mãe-adolescente. Não que vocês se importem com mães, adolescentes, crianças ou bebês. O motivo deste relato é mais um desabafo pessoal com o único objetivo de não deixar em mim as pedras que insistem em atravessar minha garganta, e além do mais, eu ainda sou bem moça pra tanta tristeza.

Fui mãe aos 16 anos. Poderia facilmente dizer que engravidei de forma consensual e que o meu parceiro na época, também com 16 anos, possuía a mesma verve irresponsável de um adolescente branco de classe média, tal como eu própria. Fomos irresponsáveis dentro da nossa responsabilidade.

Eu era cercada de cuidados, de amor. Fiz o pré-natal e o parto na rede particular. O enxoval da minha filha era todo bordado. Minha prima fez um trabalho artesanal belíssimo no cortinado do berço. Nós ganhamos um quarto novo. Ganhei roupas novas. Parei de estudar por pura preguiça (e cansaço). Não me faltou carinho, não me faltou assistência, não me faltou apoio. Não sofri qualquer espécie de abuso ou negligência. Minha família esteve ao meu lado. Não fui tirada, à força, da minha casa.

E mesmo diante de tantos privilégios, eu senti muito medo. Eu tinha medo do que acontecia com meu corpo, com meus seios, com minha barriga. Medindo 1,57 cm e pesando 50 kg, eu pari um bebê de 51cm e mais de 3kg. Tudo em mim pesava demais. Eu sentia muito medo, de tudo. Sentia medo do presente e do futuro.

Mesmo dentro de uma estrutura social e familiar que supriram absolutamente toda e qualquer necessidade prática, eu perdi minhas amigas. Eu parei de ir ao cinema. Eu não conseguia assistir Malhação. Meus seios racharam e sangraram e eu não consegui amamentar. Eu sofri um puerpério extenuante, dolorido e solitário e a cada dia que passava, eu sentia minha vida ainda mais distante de mim.

Eu amava minha filha mesmo sem saber exatamente o que aquilo significava. Eu só sentia muito medo.

Mas vejam o que é a tal da mudança de perspectiva.

Vocês duas conseguiram transformar todos aqueles primeiros anos de desesperança em passeio de férias num resort. O que vocês infligiram à uma criança de 11 anos ultrapassou qualquer limite de bom senso e humanidade.

De onde saiu a coragem de perguntar à uma criança, grávida de um estupro, o que ela gostaria de ganhar de aniversário? O que vocês imaginavam que ela pudesse responder?

“Você sente o bebê mexer? Chutar?” Simplesmente me faltam as palavras para tecer comentários.

“E como que foi a gravidez para você, querida?”

Ao invés de perguntar se ela deixaria o “bebê morrer agonizando”, em algum momento passou pelas vossas cabeças que aquela menina estaria morrendo e agonizando?

E como, por Deus, como vocês ousam chamar um estuprador de pai, e além disso, colocar numa vítima de estupro a responsabilidade de decidir se aquele homem concordaria com qualquer coisa?

A vida me deu muitas dores, mas me reservou algumas dádivas. Hoje, 20 de junho de 2022, eu agradeço às deusas, deuses, anjos e orixás, a suprema felicidade de jamais ter deixado que mulheres como vocês cruzassem o meu caminho.

Eu ainda tenho alguns anos de terapia para tratar minha própria relação com a maternidade. Ainda pretendo, em algum momento, enterrar todas as culpas e deixar cicatrizar infinitas dores.

Eu só desejo que essa menina, que vocês duas tentam, de todas as formas e com todo o poder que as compete, destruir, consiga ela própria se reinventar e voltar a acreditar em algo bom.

Com sinceros votos de que as vossas consciências não as deixem dormir enquanto lhes restar vida, me despeço.

Atenciosamente,

Taty Valéria.

 

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