Artigo: Medicina não é coisa de mulher

By 19 de julho de 2022Lute como uma garota

Por Priscila Werton

Antes mesmo de ter direitos humanos, à mulher foi dado um direito único: o de parir. No Brasil, as discussões sobre direitos das mulheres tiveram início por volta de 1940 até chegarmos na Constituição de 1988 que trouxe eficácia jurídica aos Direitos Humanos, incluindo os da mulher, que também é humana. Surgiu uma nova cidadania para a mulher por meio de uma revolução cultural, sexual e moral. Esse espaço, conquistado a partir de lutas e movimentos, deve ser garantido da forma mais segura na tentativa de impedir que sejamos continuamente violadas.

Segundo a ONU, desde 1979, entende-se que a discriminação contra a mulher significa “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil”.

As mulheres conquistaram o direito ao ensino superior no final do século XIX (pasmem!), o que permitiu a presença feminina se expandir em várias carreiras somente a partir dos anos setenta do século XX, em um processo chamado de feminização. Esse termo, que não se refere apenas ao aumento estatístico de mulheres nos ambientes acadêmicos e profissionais, mas às interferências do gênero nas escolhas e no exercício das profissões.

A MULHER MÉDICA

A partir dos anos 40, a crescente escolarização das mulheres no Ensino Superior indicou a institucionalização do conhecimento científico. Até os anos 90 do século XX, as carreiras científicas e tecnológicas ainda não eram uma prioridade para as estudantes. No caso da Medicina, a feminização do campo deu início a partir dos anos 70.

A primeira médica brasileira foi Maria Augusta Generoso Estrela, que foi formada nos Estados Unidos, uma vez que durante parte do século XIX não era permitido o acesso de mulheres ao Ensino Superior brasileiro. Maria Augusta foi uma ativista feminista e lutou pelos direitos civis das mulheres, tendo influenciado diretamente nos debates intelectuais que levaram D. Pedro II a assinar a Reforma Leôncio de Carvalho, que abriu as portas do Ensino Superior às mulheres no Brasil, em 19 de abril de 1879. Foi também fonte de inspiração para outras mulheres dispostas a enfrentar uma medicina masculina, o que gerou oposição às mulheres que optavam pela medicina, maior do que às mulheres que optavam por outras profissões de menor prestígio.

Josefa Águeda de Oliveira foi a médica pioneira nordestina, oriunda de Pernambuco, também formada nos Estados Unidos, onde conheceu Maria Augusta e juntas lutaram pela educação superior para mulheres no Brasil. No final do século XIX, publicaram, em Nova York, o jornal literário “A Mulher”, que foi distribuído nas principais capitais brasileiras. O jornal pretendia convencer as mulheres brasileiras de suas aptidões e mostrar que tanto a mulher como o homem podem se dedicar ao estudo das ciências. Em um dos números do jornal defenderam a profissão médica para mulheres com o apelo de que mulheres são gentis e podem inspirar confiança às pacientes mulheres que, frequentemente, se negavam a expor seus corpos e doenças aos médicos homens (erradas não tavas). Apesar da tentativa de tornar aceitável a introdução das mulheres na medicina brasileira, as médicas que atuaram no final do século XIX sofreram todo tipo de pressão social para que se afastassem da profissão, e as consequências da resistência masculina às médicas repercutem até hoje, quando observamos as áreas de maior atuação feminina no mercado médico no século XXI.

Nas últimas décadas, as mulheres vêm ocupando cada vez mais espaço na Medicina brasileira. Apesar disso, ainda não ocupam o mesmo espaço que o homem de igualdade salarial e dentro das especialidades, tendendo a ocupar, historicamente, especialidades cuidadoras como Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a quantidade de médicas na Paraíba em maio de 2022 representa distribuição equilibrada entre homens e mulheres ativos, sendo a quantidade de mulheres médicas (4.799) quase equivalente à de homens médicos (4.833).

A especialidade com maior número de mulheres no Brasil é a Dermatologia e a com maior número de homens é a Urologia. Na Dermatologia, elas correspondem a 77,9% dos especialistas, ou seja, há mais de três mulheres para cada homem nessa especialidade. Outras especialidades com grande proporção de mulheres são: Pediatria (74,4%), Endocrinologia e Metabologia (70,6%) e Alergia e Imunologia (67,4%). A presença feminina é notável em quatro especialidades: em Pediatria, elas são três quartos dos profissionais; em Medicina de Família e Comunidade são 58,7%; em Ginecologia e Obstetrícia já́ somam 57,7% e em Clínica Médica, 53%.

Os homens representam maior número em 36 das 55 especialidades médicas existentes no país e representam mais de 70% em 16 delas. Em dez especialidades são mais de 80%. Em todas as especialidades cirúrgicas, os homens são maioria. Na Cirurgia Geral, as mulheres ocupam apenas um quinto do total.

No Brasil, em 2020 as mulheres representavam 46,6% do total de médicos. A proporção de médicas tem aumentado na maioria dos países ao redor do mundo. Este cenário, onde há cada vez mais mulheres na profissão, também pode ser visto em países como Portugal e Reino Unido, que aumentaram em quase 10% e a Espanha em torno de 18% a porcentagem de mulheres médicas entre os anos de 2000 e 2017.

Em 2019, do total de concluintes que fizeram o Enade, 59% eram do sexo feminino, crescimento de três pontos percentuais desde 2013, confirmando a tendência de que as mulheres já são maioria no conjunto dos cursos de graduação de Medicina. Dentre os 53.776 médicos residentes em 2019, a maioria era formada de mulheres (55%), o que reflete a tendência de feminização da Medicina no Brasil. A maior parte (58,4%) tinha entre 25 e 29 anos, faixa que concentra uma proporção maior de mulheres.

Na última década, a cada ano, as mulheres se mantêm como maioria entre os novos médicos registrados nos Conselhos Regionais de Medicina, consolidando a tendência de feminização da Medicina no Brasil. O fenômeno deve ser acompanhado também na perspectiva de superação da desigualdade de gênero, pois há evidências de que as mulheres médicas recebem remuneração inferior à dos médicos.

No meio médico, a prática de homens utilizarem posições de superioridade profissional e supostamente intelectual para diminuir mulheres é comum, ainda fazendo-as acharem que estão loucas ou enganadas. Prática essa que é condenada pelo Código de Ética Médica (CEM) (de maneira geral e não como violência contra a mulher) mas que muitos homens não utilizam seus conhecimentos intelectuais para tomar ciência. Sendo assim, não é apenas um comportamento condenável moralmente, mas eticamente pelo conselho que rege os médicos no país.

O crescente número de mulheres na profissão permitiu fortalecimento do movimento feminista e a pressão por espaço e respeito. A cultura do machismo vem se perpetuando ainda com o aumento da presença feminina. A simples presença feminina não é determinante para mudança de paradigma, é necessária a presença de mulheres engajadas, dispostas a denunciarem e enfrentarem a histórica condição de opressão, subalternidade e desigualdade vivida por mulheres médicas, para que seja possível alcançar realinhamento e direcionamento das causas específicas da profissão. Mas sabemos que nem todas temos essa disposição por motivos diversos que não cabem julgamentos.

A MULHER PACIENTE                                      

Breve resumo das notícias recentes para as mulheres pacientes na medicina:

  • 15/06/2022 “Ministério da Saúde lança manual de assistência ao aborto com dados distorcidos.”

Manual do Ministério da Saúde lançou um guia sobre a assistência nos casos de aborto, criando barreiras de acesso ao direito ao aborto previsto em Lei, baseando-se em avaliações morais, sem respaldo científico, para orientar condutas clínicas.

  • 20/06/2022 “Menina de 11 anos vítima de estupro teve aborto legal negado por Juíza em Santa Catarina.”

Não há o que discutir nesse caso, por mais que exista uma crença deturpada de que uma criança de 11 anos poderia consentir um ato sexual, a Lei brasileira é clara: menor de 14 anos = estupro. Além disso, não se pode falar em pai, estuprador não é pai, não tem discussão. Além do absurdo dessa notícia por si só, que me deixou abalada enquanto mulher, médica e paciente, talvez mãe, no futuro, me abala também a sororidade. Não consigo ter sororidade por uma juíza que toma uma conduta dessa, nem pela promotora que participou do caso. Pobre criança que teve seu corpo e sua vida violados tantas vezes.

  • 28/06/2022 “Atriz que entregou criança para adoção após sofrer estupro, tem seu nome exposto em veículos de fofoca e recebe críticas”.

A mulher foi estuprada, teve uma gravidez inesperada cujos sintomas ela desconhecia e só descobriu ao fim da gestação, tomou uma atitude belíssima de entregar a criança para um lar que pudesse lhe oferecer amor, mesmo assim foi apedrejada on-line e violentada mais uma vez por uma sociedade hipócrita. Acredita- se que sua identidade e dados pessoais foram divulgados para a mídia pela equipe de profissionais de saúde do hospital que a atendeu.

  • 06/07/2022 “Ministro da Saúde Queiroga volta a defender episiotomia em audiência no Senado.”

Ministro da Saúde desconhece dados sobre violência obstétrica e espalha opiniões e informações sem embasamento científico, prejudicando a saúde física e mental de mulheres pacientes.

  • 07/07/2022 “Médico que atuava como ginecologista na rede municipal foi detido após denúncia de estupro por 06 mulheres em Hidrolândia, Ceará.”

Não são casos isolados. A mulher em seu estado de vulnerabilidade e fragilidade maior é violentada pelo seu próprio cuidador. Quem protege essa mulher?

  • 07/07/2022 “Mulheres conquistam direito a colocar DIU sem necessidade de consentimento do companheiro nos planos de saúde da Paraíba.”

Isso é uma notícia do século XXI, não consigo acreditar.

  • 11/07/2022 “Anestesista é preso em flagrante por estupro de (pelo menos) uma paciente que passava por cesárea no RJ.”

Me pergunto o que falta ao CRM para criar ferramentas que proíbam esse tipo de gente no lugar de cuidador médico. Me pergunto o que falta às faculdades de medicina do Brasil para criar meios de impedir que pessoas com esse comportamento se formem médicos.  O CREMERJ abriu procedimento para apurar denúncia contra o “médico” preso em flagrante sob acusação de estupro, mas não é possível cassação imediata do seu registro profissional, mesmo com vídeos e prisão em flagrante.

  • Dias depois, além do crime cometido pelo “anestesista” (me recuso a considerar médico uma pessoa que comete essa barbárie, por isso as aspas) vários sites, redes de televisão e portais eletrônicos violaram a intimidade, honra e imagem da paciente ao divulgar cenas do estupro na íntegra. Dupla violação: a primeira pelo “médico”, a segunda pela mídia.

 

  • 13/07/2022 “O número de mortes de gestantes e puérperas no Brasil é 35% maior do que o veiculado pelo Ministério da Saúde a partir da metodologia vigente. A revelação surge do mais recente estudo do Observatório Obstétrico Brasileiro, coordenado por Rossana Pulcineli Vieira Francisco, professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e Agatha Rodrigues, professora adjunta do Departamento de Estatística da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É expressivo o número de óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos na gravidez, parto ou puerpério que acabaram não contabilizados, por não terem sido classificados em uma das categorias pré-determinadas para morte materna da Classificação Internacional de Doenças (CID). Em 2019, foram 180 óbitos de gestantes e puérperas de até 42 dias que não foram considerados como mortes maternas. Em 2020, os óbitos não contabilizados caíram para 169 e, em 2021, de acordo com dados preliminares do OOBr, chegaram a 347. Notícia completa no site do observatório.”

 

  • 14/07/2022 “Conselho Regional de Medicina reclama à OAB por advogada dar curso sobre violência obstétrica em São Paulo.”

“Um curso online que ensina a mulheres o que é violência obstétrica e parto humanizado, quais os direitos das gestantes e como denunciar abusos suscitou a fúria do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. A entidade enviou um ofício à Ordem dos Advogados do Brasil no estado, pedindo que as “providências cabíveis” sejam tomadas contra a advogada que ministra a oficina. No documento, assinado pela presidente do Cremesp Irene Abramovich, o conselho afirma que o curso “tem o intuito de instigar as mulheres a denunciarem os médicos especialistas em obstetrícia e pediatria, por supostas violências obstétricas.” De fato, as aulas pretendem ajudar gestantes a identificar violações de direitos e denunciar os maus profissionais que as cometem – o que não deveria ser um problema para o conselho responsável por fiscalizar a conduta médica.” (Trecho retirado na íntegra do perfil @melania44 referenciado no final desse texto, que corresponde parte à notícia do The Intercept, parte à opinião da professora Melania Amorim)

Eu pensei que o objetivo da medicina fosse ajudar pacientes e não proteger médicos que possuem práticas irregulares.

  • 14/07 “Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a mando do Presidente Jair Bolsonaro, pede que Ministério Público investigue os médicos que realizaram a interrupção da gravidez da menina de 11 anos em Santa Catarina.”

Gravidez decorrente de estupro, além disso gestação de alto risco que coloca em risco direto a vida da criança que gesta, direito duplamente resguardado pela lei, vai investigar o quê?

As notícias são muitas! Mulher não tem um minuto de paz na medicina. Essas notícias me enojam e eu sinto muito por tê-las colocado aqui e expor vocês a isso, mas, infelizmente, ainda precisamos falar sobre. O Código de Ética Médica (CEM) não possui nenhum item direcionado à proteção de mulheres vítimas de violência na medicina, sejam elas pacientes ou médicas, não reconhece a violência contra mulher como uma violência real, que requer diretrizes sensíveis e eficazes.  O CEM não se debruça sobre as violências que as mulheres sofrem, especificamente. Quanto vale a mulher para a medicina? Quando o Conselho Federal de Medicina pretende nos proteger? A medicina é feminina só no nome.

Fontes:  

ONU. Assembléia Geral das Nações Unidas. 1919. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discrimulher. htm.

RAGO, E. GÊNERO, MEDICINA, HISTÓRIA. In: XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2001, São Paulo. Anais […]. São Paulo: São Paulo, 2001.

SCHEFFER, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Federal de Medicina, 2020. (Disponível no site do CFM com acesso aberto à população)

Notícias compiladas no Instagram da Professora Ginecologista e Obstetra Doutora Melania Amorim  @melania44 e de divulgação ampla no país em veículos diversos.

 

@priscilawerton é médica, feminista e defensora do SUS

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