Em julho de 2021, republicamos aqui uma matéria da Folha de São Paulo que tinha como tema o “trabalho” das igrejas evangélicas em silenciar vítimas de violência doméstica. Em junho de 2022, chegou até a redação o relato de uma jovem paraibana sobre os anos de abuso que viveu dentro da Igreja Universal do Reino de Deus.
Em setembro de 2022, uma outra jovem, dessa vez de Guarulhos, em São Paulo, entrou em contato para dar seu relato de abusos, violências e omissões dentro de uma organização missionária que recebe pessoas de todas as igrejas evangélicas. Colocamos nosso espaço à disposição, mas o relato não aconteceu. No final do mês de janeiro de 2023, a mesma jovem nos procurou novamente, dessa vez disposta a contar toda sua história.
Camila tinha apenas 18 anos e um objetivo: ser missionária. Apesar de não fazer parte de uma família religiosa, ela tinha o desejo de evangelizar, trabalhar com comunidades carentes, ser voluntária e lutar por uma causa que ela acreditava ser justa e nobre. E assim, Camila saiu do interior do Mato Grosso do Sul em 2013 e foi até Almirante Tamandaré, região metropolitana de Curitiba, para estudar o ofício na Jocum – Jovens Com Uma Missão, conhecida como a maior instituição missionária do mundo. Camila estudou, aprendeu, e se tornou missionária em janeiro de 2014, quando começou a viajar e pregar a palavra do Evangelho, um trabalho que preenchia sua vida e que era feito com dedicação e amor.
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Foi em 2015 que ela conheceu seu futuro marido, também missionário e que vinha de um processo de reabilitação dentro da igreja pelo uso de drogas. Começaram então a “amizade especial”, que antecede o namoro propriamente dito e que é feito sob supervisão. Em setembro de 2016, depois de todo o processo de consentimento dos pais de Camila e dos pastores da igreja, eles se casaram. E foi na lua de mel que Camila sofreu a primeira violência.
Camila apanhava pelos motivos mais banais possíveis. Por deixar um copo em cima da pia; por deixar roupa suja no cesto de roupa suja (?); por ficar deitada enquanto ele ia trabalhar. É importante ressaltar que nem no período de namoro e nem no casamento, o homem teve qualquer recaída em relação às drogas. Ele era um homem naturalmente violento com a esposa. Camila também foi estuprada incontáveis vezes. Numa determinada ocasião, foi forçada a praticar sexo anal. Nesse momento do seu relato, Camila chora.
“Me senti invadida, desrespeitada e humilhada. Eu sangrava, gritava de dor, pedi pra ele parar, mas ele não parou”. Mesmo sendo um momento de pavor, ela ainda se questionava. “A violência sexual foi a mais difícil de perceber porque eu aprendi na igreja que meu corpo não pertencia a mim, mas ao meu companheiro e deveria estar disponível pra ele sempre”.
Essa mentalidade forçava Camila a ter relações, mas nem sempre isso era possível.
“Uma vez ele quis transar, mas eu estava tão assustada que não consegui. Ele quebrou a casa inteira e me obrigou a dormir no corredor. Depois ainda veio reclamar porque eu não o procurei para me desculpar”.
Estar menstruada era a única justificativa possível para que Camila não fosse violentada. “Em seis meses de casamento, eu nunca tive um orgasmo”.
Apesar das violências físicas e dos estupros, ela aponta que o abuso psicológico era o pior de todos. “Eu sentia terror só em ouvir o portão abrir”.
Obviamente, tantos episódios de violência começaram a fugir do controle doméstico. Vizinhos e amigos da igreja notaram o comportamento do casal.
“As pessoas viam e tentavam me ajudar, mas eu não eu conseguia explicar a gravidade das violências que eu sofria”.
Apesar do comportamento explosivo dentro de casa, ele era visto como uma pessoa calma e tranquila publicamente. Já Camila era taxada de insubmissa e questionadora.
“Fizemos uma espécie de terapia de casal conduzida pela própria igreja. Pra fora, eu era vista como preguiçosa e insubmissa”.
Por um tempo bem breve, as coisas pareciam que estavam resolvidas, até que o marido de Camila se inscreveu num curso bíblico (pago com o cartão dela) e antes mesmo da primeira aula, teve um surto de raiva porque a esposa não se levantou da cama para lhe entregar em mãos, a mochila que ele levaria.
“É assim que você vai começar um curso bíblico, com essa raiva toda?”.
Camila não sabia, mas aquelas palavras seriam o motivo de uma tentativa de feminicídio.
“Era 10 de abril de 2017. Foi a primeira vez que eu o enfrentei e foi o estopim. Ele me deu socos na cabeça, me enforcou, me sufocou com o travesseiro e eu achei que fosse morrer ali. Cheguei a desmaiar e quando voltei à consciência, tinha sangue escorrendo pelo meu braço, meu pescoço estava vermelho”.
O marido de Camila calçava o tênis como se nada tivesse acontecido e ela começou a gritar por socorro, foi quando começou a apanhar com um fio de telefone.
“Naquele dia virou a chave”
“Esperei ele sair, catei meus documentos e corri pra casa de uma vizinha, que também era da igreja. Ligamos pra polícia, que além de demorar muito a chegar, ainda me perguntou se eu era ciumenta e eu nem tive forças pra responder, mas fui na Delegacia da Mulher e fiz exame de corpo de delito. Eu estava em choque”.
Camila lembra que mesmo na Delegacia da Mulher, não conseguiu dar seu depoimento porque a unidade não tinha estrutura.
Nessa mesma noite, o Big Brother Brasil estava em sua 17ª edição e foi exibido o episódio em que o participante Marcos Harter foi expulso do programa depois de agredir Emilly Araújo. Camila assistiu aquelas cenas e se identificou.
“Aquilo estava acontecendo comigo”.
Escondida e amparada por vizinhos, Camila percebeu quando o marido chegou em casa no meio da noite e saiu com uma mala. Ele colocou água e comida pra o cachorro e saiu como se estivesse fugindo. Ela aproveitou a oportunidade para pegar o resto de suas coisas e um valor em dinheiro que estava guardado em casa.
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Passados alguns dias, ela só conseguiu registrar o Boletim de Ocorrência após ameaçar ir no Ministério Público. E a partir daquele momento, teve que lidar com novas violências. Os líderes da igreja organizaram uma reunião e depois de três anos de trabalho duro e voluntário, Camila foi expulsa da comunidade em que vivia e a grande preocupação de todos era sobre como fazer o estorno do valor que Camila pagou para o curso bíblico.
“Comprei minha passagem para a casa dos meus pais, em Mato Grosso do Sul, e ele continuou nas atividades normais, sem nenhum tipo de reclamação. Saí como a mulher que abandou o marido e o lar e que preferiu viver a vida dela do que salvar o casamento. Nenhum dos líderes me prestou qualquer solidariedade ou apoio”.
Mesmo longe, Camila continuava recebendo mensagens do marido.
“Ele dizia que eu havia acabado com a vida dele. Até minha sogra mandou mensagens, dizendo que eu arruinei a vida do filho dela”
Em 5 de maio de 2017, temendo ser encontrada pelo marido, Camila saiu de Mato Grosso do Sul e se mudou para Guarulhos, mesmo sem dinheiro algum. Lá, ela continuou frequentando a igreja e afirma que foi bem acolhida. Começou a trabalhar, fez novos amigos. Mas a vida não entraria nos eixos de forma tão simples quanto ela imaginava.
“Comecei a ter pesadelos e alternava momentos de depressão e ansiedade. Depois de um tempo em paz, as paranoias começaram a voltar e me paralisaram. Fui para um psiquiatra, recebi o diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós Traumático e comecei um tratamento muito pesado, com cerca de 10 medicamentos por dia. Tomei tanto remédio que meu corpo começou a produzir leite e meu peito chegou a empedrar. Quando veio a pandemia, minha saúde mental piorou. No meio disso tudo, eu ainda precisava lidar com o fato de que ainda estava casada no papel”.
Ela deu entrada com o pedido na defensoria, mas foi informada que o processo deveria ocorrer na cidade em que ela se casou.
“A ‘sugestão’ do defensor foi eu tentar convencer meu abusador a vir até Guarulhos e assinar os papéis. Como eu ia fazer isso?”
Em outubro de 2019, foi sancionada a Lei 13.894, que facilita o divórcio de vítimas de violência doméstica e familiar. Camila foi encaminhada para a Ong Asbrad – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude e seu processo começou a andar. Mas foi só no final de 2020 que o então marido se mostrou disposto a colaborar o processo do divórcio e em julho de 2022, Camila conseguiu sua tão sonhada libertação.
“Não estou 100% bem, tenho muitas feridas, ainda tenho gatilhos. Ele continua pregando Assembleia de Deus Campinas em Goiânia, a vida dele não sofreu nenhum tipo de dano”.
Apesar de carregar esse ressentimento, Camila se diz grata ao Universo.
“Hoje não tenho mais religião. Agradeço a mim mesmo, a Camila de 22 anos que teve muita coragem de mudar de vida. Dei duas festas para comemorar o divórcio e foram os dias mais felizes da minha vida. Mostrei que eu estava viva!”
Camila trabalha, é bolsista do Prouni e no final de 2023 vai concluir a graduação.
Ela encerra seu depoimento com mais um ressentimento, talvez o maior deles.
“Se as igrejas ao menos se preocupassem em falar mais sobre violência doméstica ao invés de falar em como ser uma boa mãe e uma boa dona de casa, virtuosa e submissa, talvez a gente não tivesse tantos casos de violência. Essa história de casamento indissolúvel, de que é sempre a mulher que tem que lutar, que tem que orar. Muitas mulheres passam por isso e ficam presas porque são ensinadas que a responsabilidade do casamento é só delas e mesmo quando são traídas, a culpa é jogada nelas”
“Me descobri como mulher e vi a potência que eu tenho, mas eu não precisava ter passado por aquilo tudo.”
Não Camila, você não precisava ter passado por aquilo tudo.
*O inquérito sobre as violências que Camila sofreu ainda está pendente.
Taty Valéria