Feminicídio: imprensa paraibana ancora-se no jornalismo declaratório; artigo de Mabel Dias

Por Mabel Dias, em artigo publicado originalmente no Observatório Paraibano de Jornalismo

Duas mulheres foram assassinadas no bairro João Paulo II, em João Pessoa, na noite de domingo (2). O autor do crime é o policial penal Osmany de Moraes Pereira, que foi candidato a vereador nas eleições 2020, pelo Avante.

A notícia foi divulgada por todos os portais de João Pessoa e da Paraíba, no entanto, a maioria não cita que o que aconteceu na casa onde moravam as mulheres, foi um feminicídio. Um desses sites, o Repórter PB, traz no título “duplo homicídio” e no lead da matéria, refere-se ao duplo feminicídio como “um trágico incidente”. Mais uma vez, o jornalismo declaratório entra em cena na mídia paraibana, e repete o que as fontes oficiais, como a polícia, informam. Não há contextualização nem questionamentos aos policiais de que o crime se trata de um feminicídio. Apenas o Paraíba Feminina, de responsabilidade da jornalista Tatyana Valéria, usa o termo feminicídio para classificar, corretamente o que aconteceu.

Os nomes das mulheres assassinadas também não são divulgados, e em alguns portais, como o G1PB, do grupo Globo, não tem a foto nem o nome do policial penal. A maioria dos portais repete o release divulgado pela assessoria da Polícia Militar. Novamente, feminicídio é tratado apenas na esfera policial e como “crise conjugal”. Nesta segunda-feira (3), o G1PB, publicou foto e os nomes das mulheres assassinadas, mas deixou para a fonte policial classificar o crime como duplo feminicídio.

O Instituto Patrícia Galvão lançou em 2016 o manual Feminicídio na Mídia, em que analisa a cobertura da imprensa sobre os casos de violência sexual contra mulheres (cisgêneras, travestis e transgêneras) e os feminicídios no Brasil. Foram analisados, durante seis meses, 71 veículos representativos das cinco regiões brasileiras. Na Paraíba, foram analisados o site MaisPB e o Paraíba Online. Em 2016, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) já havia completado um ano e foi sancionada pela presidenta da República Dilma Rousseff. Naquele período, as pesquisadoras do manual já identificavam o silenciamento por parte da mídia sobre o uso do termo “feminicídio”, mesmo a lei já estando em vigor. O resultado da pesquisa revelou que a mídia fazia uma cobertura individualizada, factual e com enquadramento policial.

“Entre 2015 e 2016, é possível afirmar que, em relação à cobertura dos assassinatos de mulheres, prevaleciam matérias sobre a morte em si, sem informações sobre quem era aquela mulher, se já havia buscado ajuda, recorrido ao Estado para se defender de violências anteriores, se a vítima tinha medida protetiva…”

Quando as reportagens informavam que se tratava de um feminicídio, havia um romanceamento do caso, sem responsabilizar o autor do crime e apontando como causas, “ciúmes”, “violenta emoção”, “defesa da honra”, o autor estava “fora de si”, “transtornado”. É um discurso, segundo a pesquisadora Marina Sanematsu, responsável pelo manual Feminicídio na Mídia, que transfere a culpa para a mulher, por seu comportamento e atitudes.

Quando as mulheres negras são as vítimas de feminicídio, há violações de seus direitos. “Em 15% das matérias ilustradas por imagens de vítimas houve exibição de corpos – em sua maioria de mulheres negras – sem qualquer tratamento adequado. Quando isso ocorre, é importante ressaltar que, além do vilipêndio pela crueldade da morte, há a revitimização pela exposição midiática”.

Um caso que ilustra bem esta situação aconteceu em 2017, quando o periódico sensacionalista Aqui PE, do grupo Diários Associados em Pernambuco, publicou na capa do jornal impresso a foto da genitália de uma moça negra que havia acabado de ser assassinada pelo “companheiro”, em uma rua do Recife Antigo. As professoras Ana Veloso e Patrícia Paixão analisaram o caso no artigo Violações de direitos humanos na mídia: o caso Diana no Jornal Aqui PE.

Elas identificaram que o periódico reflete as relações de poder estabelecidas historicamente na mídia brasileira, reproduzindo cultural e simbolicamente, o patriarcalismo, o racismo e o classismo. A violação de direitos praticada pelo AQUI PE foi levada pelas professoras, que fazem parte do Coletivo Intervozes, ao Ministério Público Estadual de Pernambuco, que instalou um inquérito civil, e determinou uma série de medidas em relação ao jornal, como reparação pelo dano causado a moça assassinada e que teve suas partes íntimas expostas na capa do jornal; retratação publicada na capa do periódico; realização de reportagens sobre os direitos da população negra; apoio na realização de um seminário sobre direito à comunicação para jornalistas, estudantes e a sociedade em geral e a divulgação de uma campanha nas redes sociais do jornal sobre direitos humanos.

Na Paraíba, a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana, em parceria com o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, o Observatório Paraibano de Jornalismo e a Rede de Atenção às Mulheres em Situação de Violência Doméstica (REAMCAV), elaboraram um manual para a imprensa paraibana, com orientações para uma cobertura ética e humanizada dos casos de feminicídio e de violência contra as mulheres. Com um olhar atento, as entidades perceberam que o enquadramento adotado pela imprensa paraibana (TV, rádio, sites, blogs) é policialesco, omitindo informações e culpabilizando as mulheres pela violência que sofreram.

Já são nove anos que a Lei do Feminícidio existe no Brasil e que a pesquisa do Instituto Patrícia Galvão foi publicada. Nesse sentido, não é mais possível que a mídia paraibana siga omitindo a sua existência, deixando de exercer a sua responsabilidade e compromisso com o combate à violência contra as mulheres.

*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, feminista, integrante do Coletivo Intervozes, doutoranda em Comunicação pela UFPE e autora do livro “A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional”, da editora Arribaçã, e coleção Anayde Beiriz.

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