A mirabolante história da primeira senadora eleita do Brasil: “não me tratavam como colega”

By 8 de junho de 2019Brasil

Ela foi recebida com buquês de flores e poesia por homens postados na entrada do plenário do Senado Federal. O ano era 1979, e tomava posse pelo Amazonas a primeira senadora da República brasileira, Eunice Michiles, da então Arena, partido que dava sustentação política à ditadura militar (1964-1985) em vigor.

Antes dela, no período do Império, a princesa Isabel (1846-1921), filha do imperador Pedro 2º, ocupou uma cadeira no Senado por “direito dinástico”. Eunice, porém, foi a primeira mulher eleita a assumir o cargo.

Ao contrário da legislação atual, em que os senadores e suplentes formam a mesma chapa, há 40 anos o segundo mais votado da legenda vitoriosa tornava-se suplente do efetivo.

Candidata a senadora por uma sublegenda da Arena em 1978, Eunice ficou com a segunda votação do partido situacionista (32.819 votos, 46% dos votos do partido) e, assim, tornou-se a primeira suplente de João Bosco de Lima (1936-1979), que morreu três meses após o início da legislatura, dando lugar a ela.

“Eles foram muito elegantes, verdadeiros cavalheiros. Mas me senti muito mal com tudo aquilo”, diz a ex-senadora, hoje com 89 anos. “A formalidade e elegância com que me tratavam era uma espécie de discriminação positiva, até gostosa. Mas não me tratavam como colega”, afirma.

Apesar da recepção calorosa, ela conta que não foi bem aceita no Parlamento. “Vinha de um estado pobre [Amazonas], política do interior, e ainda mulher. Foi muito difícil me inserir. Logo no começo vi que seria um caminho longo.”

“Eu era uma dama no meio de homens do porte de Marco Maciel, [ex-vice-presidente da República], Paulo Brossard [(1924-2015), ex-ministro da Justiça e do STF (Supremo Tribunal Federal], e Jarbas Passarinho [(1920-2016), ex-governador ex-ministro do Trabalho, da Educação, da Previdência Social e da Justiça, além de presidente do Senado Federal]. Eram políticos influentes, grandes oradores. Eu, uma estranha no ninho.”

Eunice conta que acabou se aproximando então de grupos como o MMDS (Movimento da Mulher Democrática Social) e conta que o grupo tinha militantes atuando em defesa de bandeiras das mulheres em todos os estados. Segundo a ex-senadora, à época, o MMDS teve força política suficiente para “exigir” que o general João Baptista Figueiredo (1918-1999), último presidente da ditadura, nomeasse a professora e advogada, Esther Figueiredo Ferraz (1915-2008), na pasta da Educação. Ferraz foi a primeira mulher a ocupar uma pasta ministerial na República brasileira.

A senadora explica que “apanhava de todos os lados”. Era vista pelos conservadores como feminista, e como “representante dos conservadores” pelos movimentos feministas.

“Como política, sempre defendi três bandeiras: a liberdade religiosa, cada pessoa escolhe como quer adorar seu criador; o Amazonas, sempre, sou casada com o Amazonas; e as bandeiras das mulheres”, afirma Eunice.

Parlamento não tinha banheiro para mulheres

“Tinha de usar o banheiro do restaurante. No plenário só tinha o banheiro masculino. Não havia banheiro feminino”, diz Eunice Michiles.

Somente em janeiro de 2016, 37 anos após a posse da primeira senadora da República, e numa legislatura com 13 mulheres, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), então presidente da Casa, reduziu o espaço do banheiro masculino no plenário para instalação de um banheiro para as mulheres.

Isso depois de muita insistência da bancada feminina, capitaneada pela ex-senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM).

“A questão do banheiro feminino no Senado é um retrato claro do quanto somos discriminadas, como mulheres, desde que tomamos posse”, afirma ela, que deixou o Senado neste ano.

“Hoje, eu reconheço mais o que ela representou para movimento feminista à época”, diz a ex-senadora. “Quando ela era senadora, eu já militava no PCdoB, que era um partido clandestino à época da ditadura”, afirma.

O direito de não ter (mais) filhos

Eunice conta que se assustou com a condição de vida das mulheres em Maués (AM), a 356 km de Manaus, quando se mudou aos 21 anos para o município na década de 1940, após se casar com Darci Augusto Michiles, filho do prefeito.

Paulistana, ela se deparou com um “outro Brasil”, que, até então desconhecia. “A primeira coisa que me chocou foi a falta de conhecimento que mulheres tinham dos seus direitos. Principalmente o direito de não terem filhos. Faltava informação, que é um direito básico. As mulheres tinham seis, oito, 15 filhos e não conheciam métodos
anticoncepcionais”, diz.

“Ainda não havia a pílula, mas havia outros métodos. A laqueadura, por exemplo”, afirma. Ela conta, porém, que, na época, médicos que fizessem laqueaduras nas mulheres, poderiam ser presos e processados.

Em abril, Eunice sofreu um infarto ao ir para o culto em Brasília. Às vésperas de fazer 90 anos em 10 de julho, ela se recupera em casa cercada pelos filhos, entre eles o ex-deputado Humberto Michiles, o único que seguiu a carreira política na família.

Do Uol

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