O caso é recorrente em novelas. Nesse ano, em A Dona do Pedaço, foi Edilene (Cynthia Senek), que se envolveu com o personagem de José de Abreu, Otávio, seu patrão. A garota morreu após um aborto. Há mais de 20 anos, em Laços de Família, Danilo (Alexandre Borges) seduzia Ritinha (Juliana Paes) nos mesmos moldes.
Lembro de um episódio que virou “piada” na família. Minha prima estava lavando a louça de casa e seu irmão chegou com um grupo de amigos. Um deles, que não a conhecia, soltou em alto e bom som: “E aí Fulano, já comeu?”. Meu primo desfez o mal entendido, minha prima ficou irada. Todos riram muito. Caso ela fosse a empregada, e não dona da casa, teria sido diferente.
O assédio e abuso sexual existem há séculos contra as empregadas domésticas. E a situação é tão normalizada que há alguns homens que exibem as suas experiências sexuais com as funcionárias, como troféus em conversas masculinas.
E as vítimas? Sempre com medo, sempre do lado frágil dessa história, escondem até de si mesmas os estupros sofridos no seu local de trabalho. A empregada está no lado em que a corda estoura, mas, com vergonha e medo de perder o emprego, lida com aquilo em silêncio.
Estupro na casa de praia
A baiana M., atualmente com 50 anos, foi estuprada na casa de praia dos empregadores, aos 12 anos. Ela pediu para que a neta revelasse a sua história, devido a dor que sente até hoje ao recordar do episódio.
M. representa a profissão que é passada de mãe para filha. A sua mãe trabalhava na casa de um fazendeiro, na Bahia, foi abusada e engravidou. Deu à luz a M. e decidiu tentar a vida em São Paulo. Após dois anos no novo emprego no sudeste, decidiu que era hora de levar também a filha. A menina foi criada como se fosse parte da família na casa em que sua mãe trabalhava.
Dez anos depois, a postura da família mudou. M. estava na puberdade e o patrão começou a passar a mão nela em situações esporádicas. Em um final de semana na praia, enquanto a mulher não estava na casa, ele a violentou.
M. ficou por mais dois anos nesse local, sem contar nada para ninguém. Ela se casou anos mais tarde com um rapaz que trabalhava próximo à residência em que vivia. A única recordação que tem desse episódio é a dor que sentiu quando perdeu a virgindade.
Um assunto do qual ninguém fala
A advogada Tatiane Gasparini está fazendo a tese de mestrado na USP, em São Paulo: “Por baixo do avental: Um estudo sobre a violência sexual cometida contra empregadas domésticas”.
Para a presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de São Paulo, Janaina Souza, há poucos trabalhos acadêmicos desse tipo porque é difícil para as próprias domésticas revelarem os assédios. “A incerteza da punição dos estupradores é o maior medo das mulheres abusadas. Por outro lado, quando tomam coragem de falar para a esposa abusador, elas normalmente perdem o emprego e ainda são taxadas de mentirosas”, explica Janaina, que foi empregada na juventude e não sofreu assédio.
Valeria Riberio Corozzacz, dá aulas de história da antropologia e antropologia de gênero na Universidade de Modena, na Itália, e já estudou o tema. Fez a primeira pesquisa entre 2009 a 2012, reuniu 21 homens brancos, de classe média alta carioca, entre 43 a 60 anos, e fez questionamentos sobre os relacionamentos com as domésticas.
Oito desses homens afirmaram que tiveram iniciação sexual com as empregadas. Uma das repostas foi bem precisa: Mico, de 59 anos, disse que apenas não manteve relação sexual porque a família não tinha dinheiro para ter uma funcionária em casa. Os demais homens revelaram que conheciam alguém que manteve esse tipo de comportamento.
De forma banal, nas entrevistas esses mesmos homens falavam da expressão TED (Terror das Empregadas Domésticas) que era utilizada em suas turmas a respeito dos amigos que assediavam e violentavam as trabalhadoras. O artigo de Valéria: “Abusos sexuais no emprego doméstico no Rio de Janeiro” já foi publicado na França, Itália e Brasil.
“Ele é safado mesmo”
Um homem rico de 92 anos, com duas empregadas para cuidar dele e da casa grande, num bairro nobre de São Paulo. Os filhos ouvem das funcionárias que o patrão está tentando assediá-las, primeiro com elogios. Elas dizem que, à noite, vai ao quarto delas e pede para elas dormirem com ele.
O filho ouve tudo calado e justifica o comportamento inadequado do pai, com a seguinte frase “Ele sempre foi tarado, não é agora que vai mudar”. As duas domésticas procuram ajuda no sindicato, após se demitirem, relatarem o caso e nunca mais retornarem. “Elas falam sobre o que passaram e depois que solicitamos mais detalhes, elas desaparecem. É uma questão muito delicada, a vergonha e a falta de informação ainda dominam a nossa classe”, explica a diretora jurídica Natalie Rosário de Alcides, que trabalha no sindicato.
No Rio de Janeiro, uma única doméstica procurou a presidente da entidade sindical da categoria, Maria Izabel Lourenço, desde 2009. A mulher relatou o abuso e perguntou qual medida deveria tomar, já que havia pedido demissão devido ao crime. “Indicamos que registrasse a ocorrência, o abusador soube e ameaçou fazer uma denúncia contra ela. Ela teve medo e retirou a queixa. Por isso, pouquíssimas mulheres revelam esse crime. Há também a vergonha e a falta de coragem para falar”, conta Maria Izabel.
Para ela, isso acontece desde a época da escravidão.
Os dois sindicatos começaram campanhas de conscientização para as afiliadas. A pesquisadora Tatiane conta que apenas há poucos anos essas profissionais passaram a ter os direitos trabalhistas.
“Essa profissão sofreu com tudo. O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem número grande de domésticas, uma característica clássica de países em desenvolvimento. Na Europa ou EUA é muito caro ter uma profissional dessas em casas. É nossa essa tradição da classe média achar necessário ter alguém para lhe servir”, ponderou.
Aborto e perda do emprego
O engenheiro baiano C., de 34 anos, pediu anonimato para falar sobre o seu caso. Ele tinha 14 anos quando engravidou uma doméstica que trabalhava em sua casa. Segundo contou, na época, ele não tinha noção de que o que ele e os primos faziam era algo errado. “Na minha primeira vez, eu engravidei a moça. Ela fez o aborto, minha mãe ajudou a pagar e depois foi embora de casa. Olhando com os olhos de hoje, era um assédio o que cometíamos. Lembro que ela tinha muito medo de perder o emprego”, conta.
Com o aumento do desemprego no país e a queda de renda das famílias brasileiras, mais a obrigação de pagar os direitos trabalhistas, o número de mulheres que dorme na casa do patrão ficou reduzido. Por outro lado, o número de diaristas aumentou.
Francisco Belda, diretor do aplicativo Blumpa (que seleciona ofertas de diaristas), fala que nos últimos quatro anos nunca foi registrado nenhum caso de assédio sexual. Ele explica que, apesar de estarem sozinhas, as profissionais têm a possibilidade, pelo aplicativo, de denunciar qualquer tipo de violência. “Esse é um problema histórico de assédio, mas acreditamos porque temos todos os dados dos clientes, talvez seja um dos motivos porque isso nunca aconteceu com as nossas prestadoras de serviços”, disse Belda.
Fora do padrão
Preta Rara é ativista do movimento negro, poetisa, rapper, professora de história e modelo plus size. O seu nome é Joyce Fernandes, 34 anos, nascida e criada em Santos, litoral sul de São Paulo. Ela também é dona da página no Facebook: “Eu, Empregada Doméstica”, que foi lançada em julho de 2016 para contar as suas histórias na profissão que também foi da sua avó e mãe.
Atualmente conta com mais de 4 mil depoimentos e 160 mil seguidores que, como ela, exercem ou já foram domésticas um dia. O livro sobre os relatos deve chegar em breve nas livrarias. “É um assunto tabu, mas é de extrema importância para as domésticas alguém falar sobre esse assunto. Elas precisam saber que não precisam ceder para o padrão”, dispara Preta.
Ela mesma disse que não sofreu assédio porque o seu corpo é fora de padrão de beleza. Mas, na página, ela percebe que a maioria dos depoimentos é feita por filhos ou netos devido à dificuldade das vítimas de tocar nesse assunto.
do site Universa