A solução para a questão das candidaturas laranjas não passa por abrandar leis ou retirar o pouco dos direitos políticos conquistados por elas recentemente. O caminho a ser percorrido é justamente o oposto. Na contramão do movimento internacional que tem ampliado a participação de mulheres na política, surgem e começam a avançar com celeridade no Congresso Nacional propostas que buscam diminuir a representação obrigatória de mulheres em eleições e livrar de punições os partidos que não cumprirem a cota mínima. E os interessados têm pressa, pois no foco estão as eleições municipais de 2020. Para valer no próximo ano, quando serão escolhidos novos vereadores em mais de 5.000 cidades, as mudanças precisam ser aprovadas até o início de outubro, já que alterações nas regras eleitorais precisam ser feitas até um ano antes da votação.
É absurdo que líderes de partidos na Câmara coloquem propostas como essas em pauta, principalmente depois das eleições em que a maior bancada feminina da história chegou ao Congresso, fruto justamente de ações afirmativas que garantiram essa ampliação.
Desde 1997, a lei eleitoral exige que os partidos e coligações indiquem 30% de mulheres na lista de candidatos a cargos legislativos. Entretanto, na prática, as candidaturas femininas só se fortaleceram nas eleições de 2018, quando uma nova regra destinou uma reserva do fundo partidário para mulheres, o que proporcionou mais recursos e estrutura a essas campanhas, mas também resultou em graves denúncias de esquemas de candidaturas laranjas. Não à toa, os partidos que propõem as mudanças são os mesmos investigados pela Operação Sufrágio Ostentação, da Polícia Federal, que apura o uso de mulheres como laranjas na disputa eleitoral do ano passado.
Importante observar que esse “laranjal” tem nome e sobrenome: violência política, um ataque muito comum aos direitos políticos de mulheres candidatas ou em exercício de funções públicas e políticas. Com as candidaturas laranjas, preenchem-se as cotas apenas para cumprir a lei e acessar o fundo partidário, sem de fato dar espaço ou construir candidaturas femininas competitivas.
Não há dúvidas de que esse é um problema grave, mas a solução não passa por abrandar leis ou retirar o pouco dos direitos políticos conquistados por mulheres recentemente. O caminho a ser percorrido é justamente o oposto. E não faltam exemplos a serem seguidos.
Dos países latinos, o Brasil é um dos que têm a menor representatividade feminina na política, ficando na frente apenas de Belize e Haiti, com base nos dados do Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe, ligado à ONU (Organização das Nações Unidas). Apesar do avanço no último pleito, quando a bancada no Congresso passou de 51 para 77 deputadas e se manteve em 12 senadoras, elas representam apenas 15% dos 594 parlamentares. Nas assembleias estaduais, ocupam 161 das 1.059 cadeiras, também 15%. E, enquanto 4.908 homens são prefeitos de cidades brasileiras, apenas 662 mulheres (13%) têm a mesma função.
Realidade muito diferente da que encontramos em países vizinhos, com contextos políticos, econômicos e sociais próximos aos nossos.
A Argentina, por exemplo, viverá em 2019 sua primeira eleição com paridade, ou seja, a partir de 2020 as mulheres serão 50% do Congresso. Em 1991, foi o primeiro país do mundo a aprovar a cota eleitoral 30/70 e desde então possui uma das maiores taxas de participação feminina — atualmente são 38% de mulheres. Aos poucos, isso permitiu uma série de avanços em relação aos direitos políticos de mulheres, como a aprovação da própria lei de paridade em 2017.
Na vizinha Bolívia, 53% do Congresso Nacional é liderado por mulheres. Por lá, a paridade foi aprovada em 2010 para todos os cargos eletivos. E como não basta apenas aprovar leis, novas medidas foram implementadas para garantir o exercício pleno dos direitos políticos das mulheres, como ações de fiscalização e uma nova lei que, em 2012, tornou crime o assédio e a violência política contra mulheres.
Por fim, há o exemplo mais emblemático de todos, o México. Em maio de 2019, o Congresso aprovou por unanimidade, nas duas casas legislativas, uma reforma que modifica artigos da Constituição do país para instituir a obrigatoriedade de que 50% dos cargos públicos sejam ocupados por mulheres nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos órgãos federais, estaduais e municipais, além de órgãos autônomos. O México já tinha paridade obrigatória no Congresso. A emenda constitucional, que visa garantir igualdade entre mulheres e homens no exercício do poder público, também inclui o princípio da paridade de gênero para todos os cargos, eletivos e públicos — tanto concursados como comissionados. O país é o único no mundo a incluir o princípio da paridade na Constituição. E, como visto nos outros exemplos citados, o passo histórico é também resultado de ações afirmativas que, ao longo de 20 anos levaram mais mulheres a assumirem cargos na vida pública.
Os avanços ligados aos direitos políticos das mulheres são inquestionáveis para o aprofundamento da democracia. Portanto, o mau uso das cotas pelos partidos brasileiros não deve ser justificativa para retrocessos. O que precisamos é de medidas que previnam, fiscalizem e punam esquemas de candidaturas laranjas como os investigados. Maior participação de mulheres na política significa ampliar a diversidade de vozes no debate público e fortalecer a igualdade entre todas e todos.
Beatriz Pedreira é cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil que pesquisa e fomenta a inovação política na América Latina, com o objetivo de fortalecer a democracia na região.
Do Nexo Jornal