Defendido por autoridades de saúde do Brasil e do mundo como medida essencial contra a disseminação do novo coronavírus, o isolamento social também tem sido a deixa para criminosos que buscam suas presas no ambiente digital —especialmente se essas vítimas forem crianças e adolescentes.
Já falamos aqui sobre a possibilidade de aumento nos casos de abuso sexual infantil.
É muitas vezes nesse ambiente em que não somente adultos em trabalho remoto como também usuários da rede menores de 18 anos e com atividades escolares ou mesmo ociosos têm enfrentado os mais de cem dias de quarentena impostos por governos estaduais e municipais no enfrentamento à covid.
Nesse contexto, a Polícia Civil de São Paulo faz um alerta: de março a junho deste ano, a denúncia de crimes como pornografia infantil e chantagem sexual contra crianças e adolescentes cresceu de três a quatro vezes em relação ao período anterior à pandemia.
Quem afirma é a delegada Ana Lúcia Miranda, do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), segundo a qual boa parte dos casos chega via denúncia ao Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
“Estamos recebendo muita coisa por parte do Disque 100: a quantidade de denúncias dessa natureza triplicou ou até quadruplicou, por conta da pandemia”, diz Ana Lúcia, mas sem citar um número fechado de casos até o momento.
De acordo com a policial, o aliciamento da vítima ocorre, em geral, primeiramente por abordagens em redes sociais e plataformas de jogos online e segue para conversas em aplicativos de chat como Messenger e WhatsApp.
“Nessas conversas, o criminoso acaba ganhando a confiança da criança ou do adolescente e, aos poucos, fala de sua própria intimidade e induz a vítima a falar da intimidade dela, a exibir o próprio corpo, em fotos ou por vídeo, também via webcam, e a se tocar. Isso configura aliciamento”, afirma.
Não apenas o aliciamento como todo o processo que envolve a produção, o armazenamento e o compartilhamento de conteúdo sexual envolvendo menores são criminalizados pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), enfatiza a delegada do DHPP.
No Brasil, é crime armazenar, produzir e compartilhar esse tipo de conteúdo. A pena para armazenamento varia de um a quatro anos de prisão, de três a seis anos pelo compartilhamento, e de quatro a oito anos de prisão pela produção de conteúdo relacionado aos crimes de exploração sexual.
Também o menor que compartilhar vídeos e fotos que configurem pornografia infantil fica sujeito a punição —no caso, responde por ato infracional. “Na maior parte das vezes, a criança ou o adolescente não tem noção da gravidade disso eCrianças mais conectadas exigem cuidado maior.
A advogada Alessandra Borelli, do escritório de direito digital Opice Blum e membro da comissão de Direito Eletrônico e Crimes de Alta Tecnologia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) São Paulo, reforçou a constatação da delegada do DHPP com base no que tem observado na rotina de trabalho durante a pandemia.
“Atuo há anos nesse universo de educação digital e pude notar um aumento considerável de casos de pornografia infantil e chantagem sexual de menores abordados em redes sociais e plataformas de jogos, relatados por pais e professores.
Em uma sequência de três semanas, por exemplo, recebi seis contatos de pais ou mães e conversei com as próprias crianças para acalmá-las diante de chantagens em perfis de redes sociais”, conta.
A especialista defende que, “por força do confinamento, é preciso haver um cuidado maior” no acesso de crianças e adolescentes à internet. “As crianças estão muito mais conectadas e conhecendo ferramentas que não conheciam. Por força do isolamento social, é preciso flexibilizar as regras familiares sobre o uso desses dispositivos, mas isso não significa abdicar de três fatores: segurança, saúde e valores.”
Por segurança, a advogada recomenda: menores de 18 anos não devem compartilhar dados com estranhos, especialmente informações sobre sua rotina, e devem manter ferramentas de privacidade ativadas em seus perfis. “Não se deve ainda abrir a webcam para interagir com pessoas desconhecidas. Jogar online só com quem se conhece pessoalmente”, aconselha.
Sobre valores, ela se refere àqueles “que não são negociáveis”. “Usar as redes para espalhar ofensas, fake news e mensagens preconceituosas é outra regra que também não deve ser flexibilizada.”
Por saúde, ela exemplifica com o clássico “não está liberado jogar videogame até de madrugada, por exemplo”, tampouco “levar celular para a mesa de refeições ou renunciar à atividade física e aos momentos em família”. “É importante salientar que flexibilizar as regras familiares, durante o confinamento, não significa dizer que está tudo liberado.”
Entre os aliciadores, falsos artistas e “agenciadores de modelos”
Indagada sobre o perfil dos aliciadores relatados pelas vítimas com quem conversou, a advogada destaca que, de forma geral, eles se adaptam com facilidade ao contexto da vítima.
“Quanto mais conectados crianças e adolescentes estão, mais vulneráveis estarão à aproximação desses aliciadores. As principais portas de entradas são redes como Instagram e jogos online. A grande maioria dos aliciadores são homens, bons conhecedores de tecnologia e que, muitas vezes, usam telefones pré-pagos, perfis falsos e se fazem passar por pessoas da mesma idade que a vítima ou por artistas, técnicos de futebol, agenciadores de modelos, líderes de fãclubes”, explica Alessandra.
Como agir?
Tanto a advogada quanto a delegada do DHPP orientam os pais a agirem caso tenham conhecimento de casos do tipo com seus filhos.
“É importante denunciar ao Disque 100 ou mesmo na delegacia mais próxima”, sugere a delegada.
A advogada complementa: o ideal é que, antes de denunciar o caso em uma delegacia, “não se delete nada do conteúdo das abordagens”, que comprovam a ação do criminoso, e se faça uma ata notarial, em um cartório, a fim de preservar essas evidências.
“Mas a regra número um é: nunca, jamais ceder a qualquer tipo de chantagem, bem como manter configuradas as ferramentas de privacidade para o modo restrito no compartilhamento de informações íntimas”, diz.
Prevenção: diálogo e atenção ao comportamento dos filhos
Aos pais, a delegada e a especialista aconselham, especialmente durante o isolamento, diálogo e um cuidado mais proativo no acesso à internet. “Se os pais não autorizam que crianças e adolescentes saiam às ruas sem supervisão, uma vez que nesses espaços há criminosos e, claro, há maldade, por que no ambiente digital elas poderiam agir sem supervisão? Manter um canal de diálogo que preze pela verdade é sempre o melhor caminho: se os pais não fizerem isso, a internet fará do jeito dela”,
adverte Alessandra Borelli.
A delegada do DHPP também recomenda “pais sempre vigilantes” e diálogo. “Há métodos de monitoramento que invadem a privacidade dos filhos, mas recomendo que os pais chequem, periodicamente, o que as crianças acessam, porque nem sempre elas têm a dimensão do que é prejudicial”, recomenda. “E é importante prestar muita atenção a eventuais mudanças de comportamento do filho: quando ele começa a ser ameaçado, chantageado por um aliciador
desses, tende a ficar perturbado e com medo. Ser transparente no diálogo é fundamental.”
do site Universa