O isolamento social como gatilho de más lembranças das mulheres que sofreram abuso sexual

By 28 de julho de 2020Brasil, Lute como uma garota

No início de maio, publicamos aqui o relato de uma mulher que foi vítima de abuso sexual quando era criança. Depois de publicada, meu whatsapp foi inundado com mensagens de outras mulheres que haviam passado por situações parecidas. Foi difícil de digerir, e fiquei pensando se aquela matéria foi o gatilho para que mulheres revivessem em suas memórias momentos tão traumáticos.

O fato é que o isolamento social já é por si só, um gatilho.

“A pandemia e o isolamento são um momento de introspecção, já que passamos mais tempos sozinhos, e isso, naturalmente, faz reviver situações e memórias voltarem”, explica o psiquiatra e psicanalista Thiago Apolinario, do Ambulatório de Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), em Ribeirão Preto. “Essa situação de vulnerabilidade faz com que a pessoa entre em contato com o sofrimento que está lá, mas que não está no nível da consciência o tempo todo, até para protegê-la psiquicamente da dor.”

Apolinario conta que tem observado uma tendência de mais pacientes mulheres, no período da quarentena, falando sobre abusos sexuais sofridos no passado. Assim como a advogada Gabriela de Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre. “No primeiro momento do isolamento, as pessoas estavam mais agitadas, então notei aumento de casos de violência. Depois, acho que foram se adaptando à quarentena, e a agitação deu lugar ao silêncio. De uns tempos para cá, tenho recebido muitas consultas relacionadas a traumas antigos de violência sexual”, diz Gabriela.

Segundo Apolinario, além de ter mais tempo para lidar com memórias do passado, há situações que podem trazê-las de volta à mente. “O fato de estar dentro de casa o tempo todo, por exemplo, pode ser um gatilho importante, uma vez que grande parte dos abusos sexuais contra mulheres acontece no ambiente doméstico”, diz. Segundo o Atlas da Violência 2018, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), nas situações em que a vítima e o autor se conhecem —o que, na faixa até 13 anos, chega a 90% dos casos—, em 78,6% dos registros o crime é cometido dentro de casa.

Outra explicação é a intersecção entre os sentimentos vividos no passado e agora. As sensações de angústia e estresse causadas pelo isolamento podem trazer memórias traumáticas do passado que também causaram angústia e sensação de desamparo. “O cérebro dessa pessoa que esteve em situação adversa pode ter sido impactado nas regiões que processam a memória e a emoção. E, por isso, pode-se criar um cenário em que ela fique mais suscetível a eles em uma outra situação estressante, a partir do qual vai associar a memória a esses sentimentos”, explica a neurocientista Lívea Dornela Godoy, que em sua tese de doutorado pela USP estudou como o estresse precoce, em crianças, pode gerar problemas psicológicos nos adultos.

É possível denunciar depois de anos? A advogada Gabriela de Souza, especializada em direitos das mulheres, explica que quando um episódio de abuso vem à tona depois de anos, dependendo de quando o caso ocorreu, o crime já pode ter prescrito, o que impossibilita a abertura de uma investigação. De acordo com a legislação atual, a prescrição para o crime de estupro varia, pois pode incluir agravantes dependendo de como foi praticado. Pode ir do mínimo de 16 anos, no caso de estupro com vítima maior de 14 anos e sem outro crime envolvido, e chegar a 20 anos no caso de estupro de vulnerável, ou seja, menor de 14. Nesse último caso, a contagem de tempo da prescrição só passa a valer quando a vítima completa 18 anos.

“Ainda assim, é importante que a mulher procure ajuda de profissionais de saúde para superar o que aconteceu. O processo psicológico não tem o mesmo tempo do processo jurídico”, diz Gabriela. Ela lembra que, mesmo depois de o crime prescrever, fazer uma denúncia nas redes sociais identificando o agressor pode acabar se voltando contra a própria vítima, que corre o risco de ser processada por difamação. “Mas ela pode contar a história baseada na percepção dela e dizer como se sentiu, como a violência sofrida abalou a vida pessoal dela, sem imputar crimes a uma pessoa especificamente”, orienta a advogada. Nesse caso, o benefício é psicológico. “Ter vontade de falar sobre o que viveu significa que a pessoa está lidando com o trauma. É um indicativo de superação”, afirma o psiquiatra Thiago Apolínário.

 

da redação, com informações do Universa

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