A tragédia do incêndio no pantanal e o impacto fulminante na vida das mulheres

By 18 de setembro de 2020Brasil, Lute como uma garota

Associação de Mulheres Extrativistas do Porto da Manga (MS), comunidade ribeirinha e tradicional no Pantanal.

As imagens da devastação de santuários naturais do Pantanal, dos animais morrendo queimados, da destruição completa de mais 10% de sua cobertura vegetal, chocam o Brasil e o mundo. Mas para além da tragédia ambiental, uma outra tragédia, mais oculta, também merece atenção.

O atual panorama na região contribui para a destruição da autonomia econômica de mulheres que vivem do agroextrativismo vegetal e para aumentar a desigualdade de gênero que vinha sendo combatida por mulheres pantaneiras nos últimos anos.

A avaliação vem de ativistas de associações que buscam articular e mobilizar grupos de mulheres no Pantanal. Para elas, as mulheres estão entre as primeiras a serem impactadas, entre as populações de áreas atingidas pelas queimadas, à medida que não somente contam com a terra para a subsistência, como estão mais comprometidas com as responsabilidades sobre a própria casa e com a preservação e a conservação da terra.

“Uma das primeiras afetadas por essas queimadas e também pela estiagem são as mulheres produtoras, pois são elas que lidam diretamente com a preservação e a conservação das espécies vegetais, da fauna e flora de seus territórios, nos quais aplicam seus saberes e desenvolvem vivências de acordo com a perspectiva de sustentabilidade para manter vivo o Pantanal”, diz a socióloga Nathália Eberhardt Ziolkowski.

Nathália é pesquisadora da ONG Ecoa (Ecologia e Ação), que surgiu em Campo Grande há 31 anos com o propósito de, dentre outras atividades, desenvolver projetos e políticas públicas para a conservação e a sustentabilidade nos meios rural e urbano tanto do Pantanal quanto do Cerrado. A socióloga coordena a Secretaria Executiva da Rede de Mulheres Produtoras da ONG, por meio da qual acompanha grupos organizados de mulheres em oito comunidades tradicionais e locais de quatro municípios sul-mato-grossenses.

“Nos últimos anos, as mulheres começaram a se articular e fundar suas próprias associações, sempre em busca de autonomia econômica, seja pelo extrativismo vegetal, prioritariamente de frutas nativas do Cerrado e do Pantanal, seja pelo animal, já que muitas são coletoras de iscas e pescadoras”, explica a socióloga.

“O que a ONG faz é auxiliar na articulação desses grupos de mulheres nos territórios e em questões burocráticas, já que a maioria delas tem dificuldades de acesso aos meios de comunicação e também à internet e luz elétrica, por exemplo. Captamos recursos, enquanto ONG, para o fortalecimento dessa rede.”

Trabalho feito por mulheres foi diretamente afetado por incêndios

A ativista afirma que, com o avanço da devastação e da estiagem nos últimos meses, espécies vegetais e nascentes que haviam sido recuperadas por essas mulheres foram drasticamente afetadas pelos incêndios.

“Essas mulheres já vivem em territórios fortemente impactados por outras ações humanas: aqui no Mato Grosso do Sul, por exemplo, elas são rodeadas pelas monoculturas e pelos agrotóxicos que esses sistemas utilizam. O trabalho de reflorestamento de áreas com plantio de espécies nativas que elas estão fazendo foi impactado diretamente pelas queimadas.”

Os grupos de mulheres amparados pelo trabalho de articulação da ONG perderam territórios de extrativismo vegetal dos quais dependiam para as culturas de bocaiúva, laranjinha-de-pacu e acuri (um tipo de castanha), culturas tradicionais na região. Como a devastação do Pantanal já é considerada por especialistas a pior desde a década de 1990, existem grupos de mulheres que, neste ano, segundo a ONG Ecoa, não produziram mais que três quilos de uma dessas variedades, por exemplo.

Mulheres colocam vidas em risco para que fogo não consuma suas moradias Para piorar a situação, as queimadas acontecem em uma época de forte estiagem na região, de crise de abastecimento de água (feito, em geral, por caminhões-pipa) e de problemas respiratórios. E, desta vez, em 2020, também junto à pandemia do coronavírus.

“É muito duro acompanhar tudo isso de perto, pois, a todo momento, chegam mensagens com pedidos de ajuda, com desabafos de mulheres contando que acordam e vão dormir no meio da fumaça, sob uma completa ausência e ineficiência do Estado em aplicar políticas específicas para essas pessoas. A situação é muito alarmante, e as mulheres estão colocando suas vidas em risco para que o fogo não consuma suas moradias”, diz Nathália.

Foi nesses territórios em que a socióloga concebeu a própria “nova forma de existência” depois da formação em Campo Grande, durante a qual se via como ativista de temas de gênero e meio ambiente. “Ver o que essas mulheres representam e o modelo de resiliência delas de enfrentar todos esses problemas e seguir em frente é o que também acaba nos motivando a não abrir mão de uma luta dessas.”.

Tomada de decisões ainda tem poucas mulheres na região, diz ONG Também no Mato Grosso do Sul, mas em um braço de ativismo mais institucional, uma ONG focada na participação ativa de mulheres no planejamento e gestão de bacias hidrográficas reforça que as queimadas estão prejudicando prioritariamente mulheres.

A Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal) foi criada em agosto de 2000 e se propõe a fomentar a participação feminina nas ações de sustentabilidade do Pantanal por meio de parcerias com instituições governamentais e não governamentais nacionais e internacionais.

O grupo envolve lideranças de segmentos como educação, saúde, assistência social, assentamentos e colônias pescadoras da região, por exemplo. De acordo com a presidente da Mupan, a doutora em educação ambiental Áurea Garcia, ainda é baixa a participação de mulheres nos espaços de discussão e decisão sobre os recursos hídricos do Pantanal.

“Em 2000, tínhamos 14% de mulheres em comitês de bacias no Mato Grosso do Sul, cenário não muito diferente de outras localidades. Hoje, estamos em uma posição pouca coisa melhor, 32%, embora sejam as mulheres que movimentem e participem ativamente dos espaços de discussão e decisão locais, como os conselhos de educação e de saúde e as associações de bairro”, diz Áurea.

Desigualdade de gênero é reforçada pela crise ambiental

De acordo com Áurea, as queimadas também reforçam a desigualdade de gênero. “São as mulheres as primeiras a ser impactadas. Não bastassem os cuidados com a casa, ainda majoritariamente sob a responsabilidade delas, a maioria dos cuidados com a subsistência das famílias, com as produções em hortas ou pequenos roçados, também competem às mulheres”, diz a presidente da Mupan. “É preocupante, mas já há toda uma situação de disparidade e desigualdade de gênero que, em eventos extremos como as secas e as queimadas, só tendem a piorar”, lamenta.

Indagada se já viu um volume de incêndios como o registrado atualmente no Pantanal, Áurea é taxativa: “Dessa forma, eu nunca havia visto. “Só o mês de agosto passado ultrapassou a quantidade de focos [de incêndio] dos sete primeiros meses do ano. Isso compromete o ecossistema e a biodiversidade. E a gente tem que sempre lembrar que nem tudo pode ser recuperado. O comprometimento do solo, que em grande parte é trabalhado por essas mulheres, que o diga”.

 

da redação, com Universa

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