“Poderosos pedófilos”: Livro expõe a pedofilia praticada pelos ‘homens de bem’

By 22 de setembro de 2020Brasil

A cruzada evangélica-bolsonarista agora aponta suas armas para o “combate à pedofilia”. No fantástico mundo do alto escalão do governo, endossado pela massa que não possui qualquer resquício de pensamento crítico, ecoa o fanatismo e a canalhice de associar o crime de pedofilia com a esquerda e com a população LGBT. Eles demonizam pessoas, filmes, séries, desenhos, quadrinhos, e qualquer outro elemento possível.

Num movimento de total desespero, tentam mudar a agenda pública no sentido de esconder a catástrofe social, econômica e ambiental que o país se encontra. O que eles não contam, e isso é totalmente pensado e deliberado, é que a pedofilia é um crime que acontece dentro das casas (68% dos crimes de abuso sexual infantil acontecem em casa e com algum parente ou amigo da família) e que os chamados “homens de bem” são os grandes responsáveis por esse crime hediondo: juízes, empresários e políticos.

Poderosos Pedófilos, novo livro de Amaury Ribeiro Jr., já é perturbador em seu título, mas se torna ainda pior com os fatos narrados em suas 224 páginas. A obra é sobre uma Amazônia que existia em 1997, quando o jornalista inicia a cobertura da violência sexual contra crianças e adolescentes e pedofilia, e insiste em permanecer cruelmente real em 2020. É como se nada tivesse mudado de lá para cá. A impunidade tem prevalecido nos crimes que roubam a infância no Brasil, porque envolvem homens de poder, com altos e influentes cargos públicos, e famílias pobres que não conseguem sair dessa armadilha.

Manaus, São Gabriel da Cachoeira e Coari, no Amazonas, Belém e Altamira, no Pará, Macapá e Bailique, no Amapá, Boa Vista, em Roraima, e Guajará-Mirim, em Rondônia, são algumas das cidades, todas elas na Amazônia, em que o jornalista investigou casos de pedofilia nos últimos 20 anos. Casos escabrosos, convém alertar. Mas o que há de comum nos poderosos pedófilos citados por Amaury Ribeiro Jr. é que, sem exceção, todos eles foram condenados ou se tornaram réus em processos judiciais – as sentenças e os relatórios públicos foram anexados no livro.

Ex-prefeito de Coari Adail Pinheiro foi condenado por chefiar uma rede de pedofilia (Foto de Alberto César Araújo)

Alguns casos viraram reportagens da agência Amazônia Real, citada por Amaury para mostrar o que mudou (na verdade, que nada mudou) desde que seu primeiro contato com essas histórias. Um deles é a cerimônia de condecoração do comerciante Manuel Carneiro Pinto, condenado junto dos irmãos Manuel e Arimatéia a mais de 100 anos de prisão por abuso sexual contra meninas indígenas, em São Gabriel da Cachoeira (AM). O título foi entregue, em maio de 2019, pelo vereador e militar reformado do Exército Feliciano Borges  (Pros) e sugerida pela Comissão dos Direitos da Mulher, presidida pela vereadora Jackeline Vieira Silva (Pros). A homenagem ao comerciante foi concedida, como um ato de desagravo, um mês depois de o ex-vereador Aelson Dantas da Silva (PPR) ter sido condenado a 64 anos de prisão por estupro de vulnerável e exploração sexual de meninas indígenas.

A jornalista Kátia Brasil, uma das fundadoras da Amazônia Real e que já foi correspondente da Folha de S. Paulo, também é citada no livro por sua reportagem para o jornal sobre o abandono de um inquérito que apurava a exploração sexual de 12 meninas indígenas no Amazonas. Os denunciados, entre eles os irmãos Carneiro, acabaram em condenações, de pouco efeito. “Paradoxalmente, a decisão da Justiça, em vez de punir definitivamente os réus, que estavam presos em Manaus, acabou livrando-os das grades”, escreve Amaury. O argumento para conceder a liberdade é que os criminosos eram empresários e réus primários – Marcelo, Manuel e Arimatéia foram condenados em 2018, mas até o momento respondem em liberdade.

empresário Fabian Neves dos Santos preso por pedofilia
(Foto: Reprodução Internet)

O autor de Poderosos Pedófilos começou a investigar esse tema em 1997, quando publicou a primeira reportagem para O Globo. Ele soube desse assunto em outra pauta jornalística, quando participava de uma expedição da Fundação Nacional do Índio (Funai) para monitorar os indígenas Korubo, na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do Amazonas. Na ocasião, Amaury ouviu relatos desabridos de funcionários terceirizados da Funai que se vangloriavam de visitar as chamadas “Disneylândias do Sexo”, boates-cassino que exploravam crianças e adolescentes no centro de Manaus. Fingindo-se de turistas, o jornalista e o fotógrafo Sergio Tomisaki mergulharam nesse sinistro universo. A reportagem do jornal carioca comoveu o País. “Confesso que estou chocado e até chorei ao ler a reportagem”, afirmou o então secretário nacional dos Direitos Humanos José Gregori.

 

Mas o que se vê é que hoje esse assunto já não mobiliza, questiona o jornalista. Logo no capítulo 1, ele cita o caso da prisão em agosto de 2018 do empresário Fabian Neves dos Santos, de 37 anos. Posando-se de “cidadão do bem” nas redes sociais, o empresário comprou a virgindade de uma adolescente de 13 anos, negociada pela tia Aline Cristina de Souza Andrade por R$ 1.500. Esse valor, em si, revela o tremendo fosso da desigualdade social escancarada também na rede da exploração sexual de crianças e adolescentes. Nos arredores da Praça Dom Pedro II, em Manaus, onde funcionam as boates-cassino, meninas cobram R$ 10 por programa.

Quase metade dos pedófilos, segundo a tese de doutorado de Joaquim Hudson Ribeiro, eram pais, padrastos ou pessoas próximas das famílias. Esse é um dos fatores que acabam empurrando as meninas para a exploração sexual. Mas há outros motivos. Em Belo Monte, no Pará, a construção da megausina hidrelétrica não só levou à destruição da floresta amazônica, como também à proliferação da exploração sexual das crianças e adolescentes. Nas boates do canteiro de obras, meninas se tornam quase escravas, caindo numa armadilha da qual poucas conseguem se livrar. Na exploração sexual, elas herdam dívidas impagáveis com roupas, drogas e bebidas. Ou então, relata o autor, meninas ribeirinhas do Pará, algumas com pouco mais de 10 anos, “acabam se vendendo para sobreviver, em troca de uma nota de R$ 20,00 ou R$ 50,00”. Estrangeiros também se acostumaram a visitar a Amazônia em busca do turismo sexual infantil.

Um dos casos chocantes narrados pelo jornalista é o do ex-procurador-geral de Justiça de Roraima, Luciano Alves Queiroz, preso em 2008 na Operação Arcanjo, que desbaratou uma quadrilha de pedófilos e de tráfico de drogas. Muitos em Boa Vista o viam circular com sua Hilux SRV branca por bairros periféricos aliciando meninas pobres com notas de R$ 50 e R$ 100. Em fotos apreendidas pela Polícia Federal, ele aparece ao lado de meninas menores de idade. O poderoso pedófilo tinha apoio de uma rede de exploração sexual, da qual fazia parte a cafetina Lidiane do Nascimento Foo. Foi ela quem vendeu a virgindade da própria filha de 6 anos a Queiroz, e de outra menina da mesma idade.

Um outro homem da Justiça, o desembargador aposentado Rafael de Araújo Romano, foi condenado, em 8 de junho de 2020 (sim, um caso recentíssimo incluído no livro), a 47 anos de prisão por estupro de vulnerável. Duas macabras ironias recobrem o caso: segundo o Ministério Público do Amazonas, ele abusou sexualmente da neta de 8 anos, e em fins dos anos 1990, ele era juiz titular da Vara Especializada em Crimes Contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes, supostamente alguém que deveria proteger a infância dos brasileiros.

“Amigos escritores que tiveram acesso a este livro antes de sua publicação disseram ter tido pesadelos”, relata Amaury Ribeiro Jr., no capítulo final. Jornalista veterano, com passagens por veículos de comunicação como IstoÉ e Rede Record, ele afirma ficar abalado ao saber que nada mudou. “Nesses vinte anos de profissão, em que me mantive atento à exploração sexual praticada contra crianças e adolescentes, não me lembro de ter saído impassível ao concluir qualquer uma das reportagens detalhadas neste livro.” O jornalista Chico Otávio, que escreve o prefácio, aconselha: “Poderosos pedófilos não é o tipo de livro para se abrir no café de uma livraria”.

Pedofilia não é um assunto que se costuma ser comentado em público, mas deveria ser e, mais que isso, condenado com veemência e publicamente por todos. Livros como o de Amaury Ribeiro Jr., por mais dolorosos que sejam, revelam algo que a sociedade continua fechando os olhos, dia após dia, e isso há décadas. E, ao atualizar essa investigação que o persegue por uma vida, o jornalista nos revela uma outra faceta que não deve ser ignorada. A maioria dos condenados ou réus em processos de violência sexual contra crianças e adolescentes se autopromovem como “cidadãos de bem”, e quase todos são alinhados ao atual conservadorismo retrógrado que governa o País. Muitos deles chegaram até mesmo a fazer campanha para Jair Bolsonaro, o que é bastante sintomático.

A certeza da impunidade torna Poderosos pedófilos uma obra de alerta para algo que precisa mudar, com urgência. A começar de um Judiciário coalhado de homens de toga que decidem muitas vezes em favor dos algozes, igualmente homens. Mas o autor de A privataria tucana, que apresenta evidências de irregularidades nas privatizações na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, Amaury Ribeiro Jr. revela que há muitos brasileiros, guerreiros, que lutam arduamente contra a prostituição infantil, e que o mal nem sempre vai derrotar o bem. A leitura deste livro já é um bom começo para a tomada de consciência de uma nação.

da redação, com matéria especial publicada pela Amazônia Real

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