O preconceito que pode ceifar vidas! Proibir cultivo de maconha para fazer remédio é o absurdo em forma de retrocesso

By 2 de março de 2021Justiça

Milhares de mães, pais e filhos de pacientes que dependem de tratamento médico com componentes da cannabis sativa, a popular maconha, estão apreensivos com a possibilidade de perder acesso ao medicamento nas próximas semanas. Na última sexta-feira (26), a Justiça Federal atendeu a um pedido da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e suspendeu uma sentença que autorizava o cultivo da planta pela Abrace Esperança, associação de pacientes da Paraíba.

De acordo com a Anvisa, a associação estava produzindo óleo de cannabis “em escala industrial”, sem tomar “medidas para evitar propagação indevida da maconha.” A associação nega e diz que obedece a todas as regras de produção. “Estou desesperada. É como se dissessem para mim: ‘Cíntia, seu filho vai voltar a ser como antes, seu filho não tem direito a melhorar, você vai perdê-lo”, diz a professora Cíntia Duarte, de 45 anos, mãe de Bernardo, 9, que nasceu com paralisia cerebral e usa o óleo de cannabis desde 2015.

Segundo Cíntia, antes do medicamento, o menino tinha por volta de 100 convulsões diárias e passava semanas internado em hospitais. Hoje, as crises são raras, e ele apresentou melhoras cognitivas, motoras e de aprendizagem. “Agora ele tem uma vida, nossa família tem uma vida. Antes a gente não podia sair de casa, porque Bernardo convulsionava o tempo todo. Ele não pode ficar sem o óleo de jeito nenhum, nem que eu tenha que entrar na Justiça para plantar cannabis no quintal”, diz Cíntia, que mensalmente recebe o medicamento do filho em Barbacena (MG), onde a família vive.

A decisão da Justiça acatou ao pedido feito pela Anvisa. No próximo dia 11, uma turma de desembargadores do Tribunal Regional Federal da 5ª Região vai julgar o mérito da ação. Além de criticar o volume de produção, a Anvisa aponta que a ONG não cumpria normas técnicas que foram editadas depois que a Abrace obteve autorização para o cultivo de cannabis, em 2017.

A associação nega os apontamentos da Anvisa, diz que produz o óleo apenas para seus associados, conforme previsto pela Justiça, e que cumpria todas as regras estabelecidas pela sentença anterior. Durante o processo, o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou de maneira favorável ao cultivo de maconha pela entidade.

“Foi uma decisão impensada quando se leva em conta que do outro lado existem vidas em jogo” diz Cassiano Teixeira, diretor da associação. “São milhares pessoas que dependem do medicamento para viver. Imagina você ter uma doença grave e descobrir, de uma hora para outra, que seu remédio não vai ser mais fabricado. Se os pacientes começarem a morrer, quem será responsabilizado?”

Legalmente, agora a Abrace só pode produzir óleo para 151 pacientes, número inicial de associados no começo do processo. Porém, hoje a associação atende a 14.400 pessoas em todo o Brasil, mensalmente. Os associados pagam por volta de R$ 200 para ter acesso ao óleo medicinal, entregue em casa. Em sua maioria, o medicamento é usado por pessoas com epilepsia grave, autismo, Alzheimer e Parkinson.

A Abrace foi a primeira associação de pacientes a conseguir autorização para cultivar maconha para tratamento médico no Brasil—existem várias outras do tipo, mas a maioria ainda batalha na Justiça para ter direito ao plantio. Por ser a primeira e, por muito tempo, a única associação a produzir o óleo legalmente, a ONG paraibana acabou se transformando em destino principal para pais e mães que não conseguiam tratar seus filhos com a medicação tradicional receitada pelos médicos.

Nos últimos anos, diversos estudos científicos apontaram que substâncias extraídas da cannabis, como o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabidiol (THC), seu princípio psicoativo, podem ser usados para fins medicinais, em terapias para pacientes com epilepsia, câncer e outras enfermidades graves.

Em 2014, a Anvisa passou a autorizar a importação de remédios de CBD, mas trazer o produto custa caro, tornando a medicação inviável para famílias pobres. Já em dezembro de 2019, a entidade regulamentou a pesquisa, produção e venda de remédios no país por parte da indústria farmacêutica, mas as plantas ainda precisam ser trazidas do exterior. O principal medicamento com permissão para venda em farmácias—e que tem CBD isolado— custa cerca de R$ 2 mil.

O (não) presidente Jair Bolsonaro já afirmou ser a favor do uso medicinal da cannabis, embora seja contra o cultivo da planta no país. “Comigo não tem liberação de droga nem plantio”, afirmou, em setembro do ano passado. Ou seja, se você tiver dinheiro, compre, se não tiver, o problema é seu.

Nos últimos anos, a própria Justiça tem autorizado o plantio individual para tratamento médico por meio de habeas corpus preventivos. Assim, centenas de pessoas com depressão, ansiedade, dores crônicas e outras enfermidades já podem cultivar a erva dentro de casa.

O alto custo e a dificuldade de acesso ao óleo e outros medicamentos feitos com cannabis fazem com que algumas pessoas recorram ao tráfico de drogas e ao cultivo doméstico ilegal. Plantar maconha em casa é crime no Brasil, mas situações desesperadas pedem atitudes desesperadas. Amenizar a dor de uma criança ou o sofrimento de um idoso valem o esforço e o sacrifício.

 

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