Brasil registrou uma denúncia de violência doméstica por minuto em 2020

Ao longo de 2020, foram realizadas 694.131 ligações ao 190 para denunciar ocorrências de violência doméstica no Brasil. Isso significa dizer que, no ano marcado pela pandemia, o país registrou mais de um chamado por minuto para denunciar violências cometidas contra mulheres em suas próprias casas. Os dados são do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado nesta quinta-feira (15) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

O 190 é acionado em casos de emergência, para solicitar a intervenção policial no momento flagrante de um crime. Quando um vizinho ouve uma mulher sendo agredida e quer pedir ajuda, por exemplo, ele aciona o 190. Em 2020, o
serviço recebeu mais chamados referentes à violência doméstica do que no ano anterior. O aumento de 16,3% é um dos indícios de que a crise sanitária e econômica causada pela pandemia agravou a violência contra a mulher no
Brasil.

Outro dado que reforça essa tese é o aumento de 3,6% no número de medidas protetivas de urgência concedidas pelos tribunais de justiça em 2020. Ao todo, foram 294.440 ordens de afastamento do lar, proibição de aproximação e contato com a vítima, ou suspensão de visitação dos filhos expedidas no ano passado.

Também foram contabilizados 230.160 registros de lesão corporal dolosa cometida em contexto de violência doméstica em 2020. Isto significa dizer que, ao menos 630 mulheres procuraram uma autoridade policial diariamente para denunciar um agressor.

O número é inferior ao registrado em 2019. Segundo dados do Anuário coletados junto às polícias civis dos estados, houve queda de 7,4% nesse tipo de ocorrência. Essa redução não significa, no entanto, que essas agressões
aconteceram com menos frequência ou que a violência contra a mulher diminuiu, afirma a diretora-executiva do FBSP, Samira Bueno.

“Quando olhamos para a composição dos dados, é possível constatar um provável crescimento da violência contra a mulher, apesar da queda nos registros da Polícia Civil”, diz Bueno, e explica: “Os feminicídios continuaram acontecendo e outros serviços da rede de segurança e justiça, como o 190 e as medidas protetivas de urgência, foram mais acionados. A violência contra a mulher se mantém elevada no Brasil”.

Morta por ser mulher

Em 2020, ao menos 1.350 mulheres foram mortas por sua condição de gênero, ou seja, morreram por serem mulheres. Segundo o FBSP, o número real de feminicídios é ainda maior, uma vez que nem todos os homicídios dolosos de vítimas do sexo feminino são classificados corretamente. No total, 3.913 mulheres foram assassinadas no país no ano passado.

“O feminicídio não é um tipo penal, mas uma qualificadora do homicídio doloso. A legislação é recente e pode ser que esse policial não tenha tido elementos para identificar o feminicídio, ou não saiba identificar uma morte por
violência baseada em gênero” explica Bueno.

A pesquisadora destaca o caso do Ceará, onde a taxa de homicídios femininos chegou a 20,7 por 100 mil mulheres, mais do que o dobro do que a taxa em qualquer outro estado. Porém, apenas 8,2% de todos os assassinatos de
mulheres foram classificados como feminicídios, percentual muito inferior à média nacional de 34,5%. Isso indica que muitos casos de feminicídios podem ter sido classificados erroneamente apenas como homicídios.

De acordo com os dados compilados pelo FBSP, cerca de 377 assassinatos de mulheres cometidos por companheiros ou ex-companheiros em todo o país não foram classificados como feminicídios, embora, nestes casos, a qualificadora se aplique.

“Quando questionamos policiais, o argumento é de que a vítima era uma mulher envolvida com o tráfico ou com um traficante”, afirma a diretora executiva do FBSP, explicando a justificativa dada por agentes de segurança para
a ausência da qualificadora nos boletins de ocorrência. “Há uma sobreposição de agendas com a qual os profissionais de segurança não estão sabendo lidar. E isso tem a ver com o machismo da sociedade e das instituições em buscar a ‘vítima virtuosa’. É como se o fato de ela ter cometido um crime ou estar neste contexto fizesse com que ela não pudesse ser vítima de violência doméstica ou de feminicídio.

O perfil das vítimas de feminicídio permaneceu parecido com o verificado em anos anteriores: 74,7% tinham entre 18 e 44 anos e 61,8% eram negras.

Os dados indicam ainda que 81,5% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo e 54% foi assassinada dentro da própria casa. Além disso, em 55% dos casos de feminicídio foram utilizadas armas brancas, como facas, tesouras, canivetes, pedaços de maneira e outros instrumentos.

Os fatos não são novos e reforçam um elemento central para a compreensão do feminicídio, que ocorre principalmente em decorrência de violência doméstica, sendo o resultado final e extremo de um ciclo de violência vivenciado pelas mulheres.

 

Impacto da pandemia

De modo geral, em 2020 houve redução de praticamente todas as notificações de crimes em delegacias de polícia no país. Seguindo essa tendência, caíram os registros de ameaça (-11,8%), assédio sexual (-21,6%), estupro e estupro de vulnerável (-14,1%).

As pesquisadoras do FBSP destacam que os registros de estupro tiveram uma queda brusca em abril, primeiro mês do isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, mas voltaram a crescer em maio. Isso indica que o
confinamento pode ter dificultado a realização das denúncias, especialmente de crimes que exigem que o registro seja feito presencialmente.

Ao todo, foram notificados às autoridades policiais 60.460 casos de estupro e estupro de vulnerável em 2020. Entre as vítimas, 60,6% tinham até 13 anos, 86,9% eram do sexo feminino e 85,2% conheciam o autor da violência. Mesmo com a provável subnotificação — já identificada nesse tipo de crime usualmente, mas agravada pela pandemia —, foi registrado um estupro a cada nove minutos no país em 2020.

A subnotificação também se agravou nos crimes de violência doméstica durante a pandemia. Mas o principal impeditivo para as brasileiras denunciarem seus agressores não foi a dificuldade em ir a uma delegacia de polícia, mas sim a dificuldade de garantir autonomia financeira durante a crise sanitária. É o que mostra a pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, feita pelo FBSP em parceria com o Datafolha, lançada em junho.

“As duas pesquisas fazem fotografias diferentes que nos ajudam a montar um quadro”, afirma Bueno. Ela explica que os dados do Anuário dão alguns indícios de que a dificuldade em ter autonomia financeira fez muitas mulheres não
denunciarem seus agressores, como a pesquisa anterior indicou.

“Basta olhar para o perfil da vítima de feminicídio e de violência. A maior parte tem baixa escolaridade, está em idade reprodutiva, é predominante negra e está nas camadas mais vulneráveis da sociedade”, diz a pesquisadora.
“O que as pesquisas mostram é que muitas mulheres gostariam de sair dessa relação violenta, mas não conseguem em função de sua vulnerabilidade econômica”, finaliza.

do portal Celinas

 

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