Dubai em tensão: moradores desalojados sofrem com a falta de estrutura, insegurança e medo

By 27 de novembro de 2021novembro 29th, 2021Especiais

Na última quarta-feira (24/11), por força de uma decisão da 4ª Vara da Fazenda Pública da Capital (João Pessoa), houve a ação de despejo da comunidade Dubai, no bairro de Mangabeira. De acordo com a Defensoria Pública da Paraíba, estima-se, 1,5 mil pessoas, incluindo crianças, idosos, pessoas com deficiência e imigrantes venezuelanos, foram desalojados de suas casas.

As famílias despejadas foram removidas para três locais: Escola Municipal João Gadelha, Ginásio de Esportes Hermes Taurino, em Mangabeira, e no Centro Profissionalizante Deputado Antônio Cabral (CPDAC), no Valentina.

E foi nessa última, o CPDAC, que conseguimos acesso e pudemos ver de perto a situação real dessas famílias.

Por algum motivo alheio ao nosso entendimento, a imprensa estava proibida de entrar no local, e essa determinação era dos próprios desalojados. Além do Paraíba Feminina, o Brasil de Fato também teve acesso, e só. Equipes de TV e outros repórteres que tentaram entrar, foram hostilizados de forma muito contundente.

Já na entrada, mais hostilidade: com os parlamentares e com as outras instituições que estariam presentes numa reunião chamada pelo Conselho Estadual dos Direitos Humanos. A equipe da Defensoria Pública já estava presente no local e sua entra foi tranquila. Participaram da visita as deputadas estaduais Estela Bezerra e Cida Ramos; os vereadores Marcos Henriques e Junio Leandro;  a defensora pública Fernanda Peres; Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD); o promotor da Infância e da Juventude do Ministério Público da Paraíba, Alley Escorel; e servidores do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal de João Pessoa.

Ao todo, estão alojadas na quadra do CPDAC, 118 famílias, sendo 189 adultos, 35 adolescente, 13 idosos e 119 crianças. Pombos sobrevoam e fazem ninhos no teto da quadra.

Já de início, me alertaram que eu não tinha autorização para fazer imagens. As famílias estão, em sua maioria, todas confinadas da quadra de esportes. O local é grande, mas é quente e abafado. Mães-solo, idosos, crianças e adolescentes compartilham o mesmo espaço, minimamente dividido pelos poucos móveis que conseguiram salvar.

“Eu tinha armário, fogão, geladeira, rack. Vi colocarem tudo num caminhão, mas não encontrei mais”, diz uma das desalojadas, que ainda conseguiu recuperar duas camas e um gaveteiro.

Existem dois únicos banheiros. O banheiro feminino estava sendo lavado naquele momento, com produtos de limpeza que foram doados. “Só tem 3 chuveiros aqui, mas um tá quebrado”, afirma a senhora que estava sentada de guarda na porta.

“Criança aqui não entra sozinha”

“Eu fico aqui pra garantir que vão deixar limpo e pra não deixar criança entrar sozinha. Criança aqui só entra com a mãe”.

Ao lado, o banheiro masculino.

Enquanto homens entravam e saíam com suas toalhas e escovas de dentes, não vi uma única mulher entrar para tomar banho, elas entravam com as crianças, que saíam limpas. Perguntei à uma moça que saía com uma menina enrolada numa fralda de pano, quando ela tomaria banho. “Ah minha filha não sei. Vou pedir pra alguém olhar minha filha quando ela tiver dormindo, não dá pra deixar ela sozinha né?”. Não, não dá.

Em toda térrea do CPDAC, profissionais da PMJP oferecem serviços de saúde e assistência social. No momento em que ainda estávamos organizando nossa visita, alguém começou a distribuir Toddynho para as crianças. “Ontem não tinha isso não”, me diz um senhor de idade.

Em algumas salas de aula, caixa de mantimentos. Leite, pasta de dente, sabonetes, fraldas. Pergunto de onde vieram, ninguém soube me responder.

 

Converso com uma moça de 22 anos, mas que aparenta ter 15. Uma filha de 4 anos, outra de 5 meses, a mais velha sofre de “cansaço” e segura nas mãos os remédios que receberam depois de um atendimento médico, que ocorreu no local.

Casada, ela e o marido são catadores de recicláveis e moravam em Dubai desde sua fundação. “Eu notei que alguma coisa tava errada porque cortaram a água e a luz, ainda de tarde. De madrugada o povo chegou e mandou todo mundo sair. Não deu tempo tirar minhas coisas, perdi quase tudo”.

Um dos serviços que estão sendo oferecidos no local é a confecção da Carteira de Trabalho. “Mas a moça disse que é só pra quem tem celular, eu não tenho celular”. Nem ela, nem o marido estão saindo para trabalhar. “Se a gente sair, vão pegar nossas coisas”.

Por onde se olha, o clima é quente. E não estamos falando da média de 30ºC, do sol escaldante e da sensação sufocante no ginásio. As pessoas estão tensas, acuadas e amedrontadas. Tem-se a impressão que um grande conflito pode começar a qualquer momento. São 118 famílias que, bem ou mal, tinham seu próprio espaço e que numa única canetada, se viram apinhadas num único lugar.

“Tem gente transando aqui, não tem parede né? Eu fico com medo das crianças. Não é pra criança ficar olhando essas coisas”

Num outro ponto, duas mulheres discutem e quase saem no tapa. “É porque o marido dela tava ficando com aquela galega, só que ela morava do outro lado. Agora as duas tão aqui”.

Pergunto pelo marido. “Mulher, tu acha que ele tá aqui? Deve tá escondido”, me responde uma senhora que não consegue conter o contentamento de acompanhar a situação.

Começa a reunião e as falas são iniciadas. A impressão que se deu, até aquele momento, é que as próprias famílias não tinham a dimensão dos verdadeiros culpados pela desapropriação. E não tinha como eles saberem.

defensora pública Fernanda Peres. crédito da imagem: Martha Vasconcelos

A defensora Fernanda Peres explicou as circunstancias do processo, e deixou muito claro que a instituição só foi informada da ação horas após o início da operação policial, através de denúncia à Ouvidoria da DPE-PB. “Verifiquei que a prefeitura pedia liminarmente que fosse determinado aos moradores que no prazo de 20 dias se apresentassem à Secretaria Municipal de Habitação Social para realizar a identificação e cadastro em programa habitacional e, caso não fizessem isso no prazo de 20 dias, aí, sim, fosse determinada a desocupação da área. Esse é o pedido constante da ação”.

Nesse momento, os moradores se exaltam. “Ninguém foi avisado de nada!”

A decisão do juízo da 4ª Vara determinou a imediata desocupação e demolição das construções. O fato é que a desocupação aconteceu sem que nenhum órgão de defesa estivesse presente. “Não houve respeito ao devido processo legal, ampla defesa e nós só tomamos conhecimento a respeito depois do exaurimento da ação, já que as casas estão demolidas e isso não tem mais como voltar atrás”, afirmou a defensora pública.

Uma decisão do STF impede/dificulta o despejo de comunidades em situação de vulnerabilidade durante o período de pandemia. A Lei 14.216/2021, suspende até 31 de dezembro de 2021 o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano.

Nos casos em que há várias pessoas em situação de vulnerabilidade, a comunicação prévia à Defensoria Pública para conhecimento do processo é obrigatória e está prevista no Art. 544, do Código de Processo Civil. Existe ainda a Comissão de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade que, desde que foi criada, precisa ser informada previamente a respeito de desocupações e despejos.

Nada disso foi cumprido. São inúmeras as violações cometidas num único processo.

Enquanto a reunião corria, chega o almoço.

Procurei saber quem estava fornecendo. Seria a Prefeitura ou o Governo do Estado? Seria doação? Ninguém sabia me informar. Alguém reclama da comida. Uma servidora da Prefeitura responde “Mas não tão passando fome!”.

Uma senhora que acompanhava a reunião da porta, me confidencia num tom envergonhado. “Eu sou diarista. Deixava almoço pronto em casa, tinha feijão, arroz, salada, salsicha. Tinha banana e laranja. Agora eu tenho que comer qualquer coisa e ainda achar bom”. Ela também está sem conseguir trabalhar. “Eu vou deixar minhas coisas aqui é? Quem toma conta?”.

Quando saímos da sala onde acontecia a reunião, senti cheiro de comida. Deduzi que estava sendo preparada na cantina da escola. Além da quentinha, suco de cajá geladinho.

A informação de que uma ação foi movida pelo Conselho Estadual dos Direitos Humanos da Paraíba (CEDH/PB) ao STF, solicitando que a retirada dos moradores seja suspensa, foi ouvida por poucos. Já não há muito o que fazer depois que casas e móveis foram destruídos. Na reclamação movida no STF, o Conselho quer que seja determinada a suspensão do despejo e a volta à área dos moradores que assim desejarem. No entanto, a ação ainda aguarda uma decisão do relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes.

Uma das moradoras fez uma denúncia grave: o então candidato à prefeito Cícero Lucena, prometeu moradia e emprego aos moradores. “Ele nos iludiu, nos enganou, e não foi digno!”

No final das contas, o que os moradores querem é algo simples. Ter de volta suas casas e suas coisas no mesmo lugar de onde foram retirados. Ninguém consegue verbalizar que isso está fora de cogitação. O que se busca, dentro do que é possível e tangível, é remediar o o estrago causado.

 

Taty Valéria, com informações da Defensoria Pública da PB

 

 

 

 

 

 

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