Um vídeo publicado pela youtuber Dora Figueiredo na última semana reacendeu o debate sobre abuso em relacionamentos amorosos. Emocionada, ela falou por 17 minutos sobre sua relação com um ex-namorado, contando detalhes de como se sentia controlada e diminuída pelo então companheiro. As imagens (assista abaixo) já foram visualizadas mais de 2 milhões de vezes.
Em entrevista, Dora afirmou que teve dificuldades até mesmo para perceber que tinha vivido um namoro abusivo.
— Só percebi que o relacionamento era abusivo dois meses depois do término. Para mim foi difícil. É difícil identificar um relacionamento abusivo quando se está dentro dele. A gente se sente culpada o tempo todo, alcança um nível muito grande de dependência — disse a youtuber.
Mas por que será que é tão difícil identificar um relacionamento deste tipo? E por que é tão difícil sair dele?
A psicóloga Pamella Rossi, do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, explica que os comportamentos abusivos nem sempre são tão evidentes como uma agressão física, especialmente no início da relação. Eles costumam começar a aparecer de maneira mais sutil.
Ciúme excessivo, invasão de privacidade, chantagem emocional e o controle financeiro são alguns dos sinais comuns de relações abusivas, afirma a psicóloga. No entanto, esses comportamentos costumam ser “disfarçados” de gestos de proteção, afeto ou cuidado.
— A mulher envolvida emocionalmente acredita que esses comportamentos estão relacionados a cuidado e amor. Isso faz com que ela leve muito tempo para começar a entender e perceber que esses comportamentos não são saudáveis e que vão impactar a vida dela ao ponto de ela ficar isolada, não ter controle sobre a vida financeira, não ter mais direito à sua vida social. É uma violência mascarada de cuidado — destaca Rossi.
A especialista explica que nem mesmo as mulheres que têm conhecimento sobre o assunto estão imunes de vivenciar uma relação abusiva.
— As mulheres empoderadas não estão imunes, porque o relacionamento abusivo é mascarado pelo amor. A mulher mais esclarecida não consegue se perceber nesse lugar de vítima — diz ela. — No meu trabalho, atendo mulheres de todas as classes sociais, de todas as idades e que até trabalham com empoderamento feminino.
Com a ajuda das psicólogas Pamella Rossi e Aline Martins, enumeramos alguns comportamentos podem sinalizar que a relação é abusiva, para além da violência física.
1 – Ciúme excessivo
Ter inseguranças é normal, mas quando o “amor” vira justificativa para invasão de privacidade, agressão verbal, ameaças e chantagens emocionais, um limite foi ultrapassado e isso gera uma relação de controle.
2 – Falta de sociabilidade
Quando o casal deixa de interagir com outras pessoas, há um sinal de alerta. O abusador faz com que a vítima corte vínculos com parentes e amigos para que possa controlá-la, sempre sob a justificativa de que “fulano não é bom para você” ou “sicrano está dando em cima de você”.
3- Controle da vida do outro
O controle se dá quando o parceiro começa a decidir o que o outro pode ou não fazer. Estão incluídos aí aspectos como roupa, alimentação, amigos, atividades e, em casos mais graves, até o trabalho que o parceiro pode ter ou não. “Você vai sair assim?”, “é para o seu bem” ou “você fica mais bonita sem esse batom” são frases comuns.
4- Invasão de privacidade
O relacionamento é a dois, mas cada um deve manter seu espaço. Se ele lê suas mensagens, e-mails, controla quem são seus amigos nas redes sociais ou as suas senhas sem o seu consentimento, está invadindo sua privacidade. Se você foi pressionada ou chantageada para ceder as suas senhas e o acesso às suas redes, também.
5 – Chantagem emocional
“Se você não fizer isso, eu vou me matar”, “se você fizer aquilo, eu vou terminar tudo”. A chantagem geralmente toma essas formas. Se o abusador percebe que isso funciona — que afeta a parceira e a deixa instável emocionalmente —, ele adota essa prática para manipular.
6 – Manipulação da autoestima
“Você não é tão linda ou interessante quanto acha que é”, “você nunca vai achar alguém que te ame como eu”. O abusador menospreza e, aos poucos, destrói a autoestima da parceira, fazendo com que ela passe a acreditar que ele é o único homem que vai amá-la e que, sem ele, ela vai ficar sozinha.
7 – Controle financeiro
Sob a justificativa do cuidado, o abusador passa a controlar as finanças da parceira — tendo ela renda própria ou não. Aos poucos, vai tirando sua autonomia e a prende na relação.
Por que é difícil romper esse ciclo?
Fatores variados podem fazer com que uma mulher não consiga romper um relacionamento, mesmo tendo consciência dos abusos cometidos pelo parceiro, explica Pamella Rossi. Dependência financeira, falta de apoio da família e dos amigos e a própria dependência afetiva podem levar a pessoa a permanecer em uma relação não saudável. Também pesa o medo de tentar romper a relação e ser agredida fisicamente por isso, mesmo que a violência praticada até então seja mais sútil.
— Em geral, a vítima acredita que o companheiro vai mudar, porque ele não é violento o tempo todo. Eles oscilam entre momentos de violência e cuidado. Isso pode fazer com que o relacionamento perdure por anos — explica a psicóloga. — A vergonha de expor que viveu aquela situação e a descrença pública que ela vai sofrer, quando decidir falar, também fazem com que ela permaneça no relacionamento por mais tempo.
A psicóloga Aline Martins ressalta o alto nível de fragilidade que um relacionamento abusivo cria na vítima.
— Às vezes, romper é muito mais difícil do que identificar, justamente porque a pessoa está com a autoestima tão prejudicada que passa a acreditar que não vai conseguir mais ninguém — afirma.
Ela lembra que relacionamento abusivo não é exclusividade de casais heterossexuais e, embora a dinâmica mais comum seja a do homem abusador e da mulher como vítima, nem sempre é assim.
do site do Jornal O Globo