A triste história das irmãs que mataram o pai violento e abusador

By 26 de agosto de 2019Machismo mata
Krestina Khachaturian, uma das irmãs acusadas de matar seu pai

Uma certa tarde, Mikhail Khachaturian chegou em sua casa, no norte de Moscou (Rússia), e ficou furioso. Daquela vez porque considerou que a sala estava desarrumada. Tinha visto inclusive um fio de cabelo longo e escuro no chão. E ficou revoltado. No dia anterior, o motivo tinha sido outro. E antes desse, outro. Enfurecido, chamou suas filhas Krestina, Angelina e Maria para a sala, uma de cada vez. E as borrifou com um spray de pimenta que tinha preparado. Depois, dormiu a sesta em sua cadeira de balanço. As garotas, de 17, 18 e 19 anos, não aguentaram mais. Esperaram Mikhail, de 57 anos, dormir e começaram a golpeá-lo com um martelo e uma faca de cozinha, segundo a promotoria. Quando o homem acordou e começou a bater nelas, uma das garotas o esfaqueou até ele cair.

Krestina, Angelina e Maria enfrentam agora, um ano depois do ocorrido, acusações de assassinato premeditado. Com penas de até 20 anos de prisão para as duas mais velhas e 10 anos para a mais jovem, que naquela ocasião era menor de idade. Mas o caso revelou que naquela casa do modesto bairro de Bibirevo, enfeitada com cruzes e outros ícones religiosos, as três garotas de cabelos escuros e enormes olhos castanhos viviam um pesadelo. Levavam anos sofrendo abusos físicos e sexuais de seu pai, segundo os relatórios judiciais, com quem viviam sozinhas desde 2015, quando ele expulsou a mãe das jovens de casa e ameaçou matá-la juntamente com as filhas se ela voltasse para levá-las.

“Estavam aterrorizadas. Viviam praticamente escravizadas em um ambiente irrespirável e temiam por sua vida”, assinala um de seus advogados, Alexei Liptser, que alega que as jovens agiram em legítima defesa.

O caso das irmãs Khachaturian abalou a sociedade russa. Também colocou em evidência a constante inação − e até a normalização − das autoridades diante de um problema de dimensões colossais na Rússia: a violência doméstica. Não há estatísticas. Mas, segundo um estudo feito em 2012 pelo Ministério do Interior, 600.000 mulheres sofrem violência doméstica a cada ano. E entre 12.000 e 14.000 morrem nas mãos de seus parceiros ou familiares − uma a cada 40 minutos. Uma cifra muito semelhante à revelada pela ONU em um relatório de 2010.

A história de Krestina, Angelina e Maria está provocando uma mobilização social. Milhares de pessoas já manifestaram seu apoio às três jovens, de atrizes e youtubers famosos até a defensora de direitos humanos do Kremlin. E vem ocorrendo uma série de piquetes solitários − uma fórmula para driblar a proibição de protestar −, atividades culturais e campanhas nas redes sociais para pedir sua absolvição. Uma petição online já acumula quase 300.000 assinaturas, e foi desencadeada uma campanha como o Me Too dos Estados Unidos. No entanto, em um país muito conservador e patriarcal, no qual a Igreja ortodoxa tem grande influência, também há grupos que negam que esta violência seja um problema. Eles também se manifestaram, mas para exigir uma condenação dura e exemplar para as três jovens.

A Rússia (144 milhões de habitantes) é um dos poucos países do mundo desenvolvido que não tem uma lei específica contra a violência doméstica. E muito menos para combater a violência machista ou os feminicídios. Em 2017, em vez de avançar na proteção das vítimas, o Governo russo descriminalizou alguns casos de agressão doméstica envolvendo infratores primários. Uma reforma legal que veio depois de uma retumbante campanha da Igreja ortodoxa e dos deputados mais conservadores, que há anos se opõem até mesmo ao termo “violência doméstica”, por considerá-lo um produto das “ideias do feminismo radical” usado para “perseguir” os homens.

Agora, segundo a lei russa, uma primeira agressão sem lesões graves contra o companheiro ou os filhos é uma “falta administrativa”, punida com 15 dias de detenção e uma multa equivalente a 1.700 reais. Um segundo delito desse tipo dentro no período de um ano é punido com uma multa equivalente a 2.100 reais e três meses da prisão ou 240 horas de trabalho comunitário.

O resultado da reforma legal foi dramático, afirma Iulia Gorbunova, pesquisadora da ONG Human Rights Watch. Não existe a opção de obter uma ordem de proteção. E os recursos à disposição das vítimas − casas de acolhida, por exemplo − são ínfimos, lamenta. Se antes já era difícil denunciar um caso, com a reforma legal ficou ainda mais difícil, assinala.

Mas Aurelia Dunduc, mãe de Krestina, Angelina e Maria, já tinha dado esse passo. Sentada na área de alimentação de um escuro centro comercial de Moscou, a mulher, de 40 anos, ressalta que foi várias vezes à polícia para denunciar as surras e humilhações às quais era submetida por Mikhail Khachaturian, que depois de seus negócios nos anos noventa com pequenas máfias locais, vivia de renda e de uma pensão. “Não fizeram nada. Engavetaram a denúncia e me disseram para voltar por onde tinha vindo”, diz ela em voz muito baixa. Ao lado, uma garçonete arruma as mesas aos empurrões. E Dunduc salta com cada ruído.

Acompanhada por uma de suas amigas, a mulher, magra e de poucas palavras, diz que seu marido tinha bons contatos na polícia e na procuradoria do distrito. Dunduc, que é moldava, conta que os maus-tratos começaram pouco depois do casamento com Mikhail Khachaturian, de origem armênia. Ela tinha 19 anos e ele, 37.

Dunduc diz que não sabia que suas filhas sofriam abusos. Acredita que as garotas a protegiam e que, por saberem que suas denúncias não serviriam para nada, preferiram se calar. Algumas de suas amigas sabiam o que estava ocorrendo, embora sem muitos detalhes. Victoria Kuropatkina, íntima de Krestina, conta que sabia de parte dos abusos, mas afirma que sua amiga a proibira de ir às autoridades porque temia as consequências. Para Victoria e para ela e suas irmãs.

Em público, Angelina, Krestina e Maria eram três jovens tímidas. Muito estudiosas. A mais nova adora o cinema, conta Dunduc. Angelina gosta de ver séries, tirar selfies com suas amigas e passar o tempo em alguma cafeteria. Krestina, a mais velha, é muito boa em matemática e sonhava em estudar contabilidade, até que suas notas caíram por faltar às aulas.

Muito antes daquele julho de 2018 em que tudo explodiu, as garotas tinham parado de ir à escola. Seu pai quase não as deixava sair de casa. No entanto, criticam os advogados, as autoridades educacionais não investigaram a fundo o caso. Também não houve nenhuma investigação depois da tentativa de suicídio de Krestina, desencadeada por uma das agressões sexuais de seu pai, assinala o advogado Liptser. Na sexta-feira, o Ministério Público iniciou um processo póstumo contra Khachaturian pelos supostos abusos, o que pode provocar uma reviravolta no caso.

Krestina, Angelina e Maria estão em liberdade sob fiança, mas isoladas. Não podem se comunicar entre si nem com as testemunhas do caso ou com a mídia. “Estão bem, na medida do possível”, diz seu advogado. E acrescenta: “Seja no banco dos réus ou isoladas em casa, repetem que pelo menos não sofrem torturas e surras todos os dias”.

do El País

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