A difícil batalha feminina numa sociedade onde o machismo impera até nas atividades domésticas

By 28 de dezembro de 2019Lute como uma garota, Machismo mata


Um estudo da Revista Crescer, realizado pelo Departamento de Pesquisa da Editora Globo, confirmou que a mulher ainda arca com a maior parte das tarefas de casa — mesmo trabalhando tanto quanto o homem e, em muitos casos, sendo o principal salário da família. Cecília Cypriana, 44 anos, que trabalha como merendeira numa escola da prefeitura de São Paulo, conta que pensou em ter no mínimo três filhos. Pouco tempo depois de Júlia nascer, no entanto, ela decidiu que seria mãe de filha única. “Vivi meses com uma espécie de pânico. Chegava a passar mal. Achava que não ia dar conta de tudo que tinha de fazer em casa, de cuidar da bebê e trabalhar”, diz. Naquela fase, Cecília era soldadora numa metalúrgica no mesmo bairro onde ficava a creche de Júlia. “Nunca tentei empregos em outros lugares, mesmo quando sabia que o salário poderia ser melhor, porque poder levar e buscar a minha filha era mais importante”, diz.

No início da noite, quando chegava em casa com a filha, Cecília ia preparar o jantar, as marmitas dela e do marido, colocar a roupa para lavar e arrumar o que fosse preciso na casa. “Se eu insistisse muito, meu marido recolhia a roupa do varal, mas convencê-lo dava tanto trabalho que eu ia tocando a vida”, diz ela. Isso foi há 18 anos. Ainda hoje, a situação que Cecília viveu é comum para a maioria das mulheres. A divisão de tarefas de igual para igual em casa é raridade. Somente 10% das mulheres que responderam à pesquisa afirmaram que dividem todos os afazeres com os maridos. Em 57% dos casos, a maioria do trabalho doméstico ou sua totalidade ainda sobra para as mulheres.

Apesar da sobrecarga, a percepção da mulher de que as responsabilidades devem ser divididas de forma igualitária é de uma minoria. Perguntadas sobre o que acham da licença-paternidade, somente 26% disseram que o homem deveria ter o mesmo tempo da mulher. Para 61%, o pai deveria ficar um pouco mais em casa, mas não precisaria ser o período todo em que a mulher fica. A resposta mais citada foi de três meses. E para 13% das mães, os cinco dias de licença-paternidade são suficientes.

A jurista americana, professora da Universidade de Hastings e fundadora do Center of WorkLife Law, Joan Williams, é uma das maiores especialistas em questões de gênero e trabalho no mundo. Com mais de dez livros publicados, Joan foi responsável pela maior meta-análise já feita sobre estudos de gênero no ambiente profissional. Ela e sua equipe cruzaram e analisaram dados e pesquisas feitas ao longo de 35 anos. O resultado foi um mapeamento da trajetória da mulher no ambiente de trabalho sob diferentes circunstâncias.

Sua análise influenciou pesquisas sobre o assunto ao redor do mundo e promoveu o engajamento de altas executivas das maiores empresas globais em torno da questão de gênero no trabalho. A pedido da CRESCER, Joan analisou os dados da pesquisa de 2019. E não se espantou com as respostas em relação às licenças maternidade e paternidade.

COISA DE MÃE?

Ficar com o filho ainda é visto pela própria mulher como um dever materno. “É isso que a sociedade espera dela. E, mesmo que ache que o pai deva ter tanta responsabilidade quanto ela, acaba sucumbindo à expectativa social”, diz  Joan Williams.

Os números da pesquisa mostram que, embora tenha havido avanços na percepção da própria mulher sobre seu papel como mãe e como profissional, o cenário que começa a se formar desde os primeiros dias de nascimento da criança coloca a mulher no centro das responsabilidades com o bebê, com as tarefas de casa e como a profissional que talvez não possa assumir os projetos mais ambiciosos – e prestigiados – da empresa pelo fato de ela ser mãe. “Essa percepção comum em todo o mundo pode ter dois efeitos: gera a necessidade de a mulher estar sempre se colocando à prova, o que é muito desgastante, ou, se ela não tenta desfazer essa imagem, pode ficar profissionalmente estagnada. As duas situações são cruéis”, diz Joan Williams.

Para adicionar mais complexidade a esse contexto, as famílias atuais passam por um período delicado. Como as leitoras da CRESCER relataram, ainda há muito preconceito com a profissional que é mãe. O ambiente de trabalho não é um local em que a mulher se sente legitimada, como ocorre com a maternidade. A segurança que ela sente em seu papel de mãe é similar à que o homem experimenta no mundo do trabalho.

Da mesma forma, os homens se sentem inseguros quando adentram o mundo que a sociedade coloca como o reino feminino: o lar e o cuidado com os filhos. É certo que muitos se acomodam nessa ideia e perpetuam o ciclo de sobrecarga feminino, mas há um crescente grupo que quer participar o máximo possível – está disposto a dividir as tarefas da casa, mas não sabe bem como fazer isso ou não encontra espaço para desenvolver esse protagonismo.

O ponto que tanto a psicanalista Vera Iaconelli (SP), que olha para essa questão a partir dos anseios pessoais e da sociedade, quanto a professora Joan Williams, que analisa tudo pelo mundo do trabalho, defendem é que o homem e a mulher estão procurando seus lugares como profissionais e pais. A boa notícia é que, quando essa busca por um equilíbrio maior na vida doméstica e familiar é um anseio do casal, as chances de se construir uma configuração mais justa e confortável para todos aumenta.

Da Revista Crescer

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