Diva de 33 metros: Por que uma vagina incomoda tanto?

By 7 de janeiro de 2021Lute como uma garota

Uma fenda vermelha brilhando no meio da mata. Um órgão feminino gigante. A obra da artista plástica Juliana Notari, que construiu uma vagina de 33 metros na Usina Santa Terezinha, zona rural de Pernambuco, tem causado curiosidade e polêmica e aqui, reproduzimos o artigo publicado pela ativista Lola Aranovich sobre a obra. 

Leia na íntegra:

A artista plástica Juliana Notari construiu uma vagina de 33 metros na Usina Santa Terezinha, zona rural de Pernambuco. Com isso, está provocando a maior raiva da extrema-direita brasileira desde o QueerMuseu, em 2017.

A instalação artística, feita à mão, chama-se “Diva”, e é linda. Vermelhona, brilha. Chama muito a atenção. E sua autora está sendo trucidada nas redes sociais por conta desse destaque.

Tipo: alguma moralista de plantão reclamou: “cenário de filme pornô”. Porque essa gente detesta filme pornô, né? Tem até incel marcando um “punhetaço” ao redor do “bucetão”. “Vá em celibato para melhores efeitos”, recomenda o cartaz.

Olavão, o guru dos palavrões, escreveu num tuíte: “Por que estão falando mal da buceta de 33 metros em vez de enfrentá-la com um pirocão?” Pra variar, ele não é nada original. O que mais se vê nos comentários são menções a um pênis gigante, como se uma vagina não pudesse existir por conta própria, como se uma vagina não fosse nada, um vazio a ser preenchido por uma rola ou pelo corpo de um bebê (de preferência macho) saindo de lá.
A ideia da vagina como uma fenda na Terra não é exatamente uma novidade. Tampouco é a ligação da natureza com o corpo feminino. A arte de Juliana é uma vulva e uma ferida ao mesmo tempo. Como diz a artista, “Se fosse só a vulva, eu teria feito os grandes lábios, o clitóris. É uma ferida também. A partir do momento que ela aparece, o campo de interpretação da obra se abre para outras dimensões, como a da exploração da terra pelo capitalismo”.

Em entrevista ao Metrópoles, Juliana explicou: “Eu busco tratar da reflexão acerca da desigualdade de gênero e também da destruição do planeta Terra, como entidade e ser vivo. A vulva representa o nascimento, de onde vem a vida, e a obra construída na terra relembra para onde todos vão após a morte, de volta à natureza”.

Esse tipo de arte se chama Land Art. Tem nome, não é invenção. O projeto Usina da Arte, inspirado no Instituto Inhotim, ocupa uma antiga usina de açúcar que faliu na década de 1980. Assim, faz “um ajuste de foco, em que a decadência da monocultura canavieira dá lugar à potência plural e transformadora da arte”. A descrição do projeto é inspiradora: “A terra, o maquinário e as instalações físicas da antiga usina foram convertidos em ateliês, galerias, salas de aula: espaços para a criação, produção e exposição da arte, em diálogo com a fauna e a flora locais”.
Ou seja, pra quem reclama dos danos que a land art de Juliana causou ao meio ambiente, é bem o contrário. O projeto ajuda a manter de pé um espaço que havia sido abandonado. Transforma uma usina falida em museu ao céu aberto. Além do mais, Juliana afirma que não houve desmatamento para a instalação e que a resina usada não tem contato com a terra.
E convenhamos: não há muitas coisas mais patriarcais que um engenho de cana de açúcar. Como diz Juliana: “Além de questões de gênero, a obra tem como objetivo combater a lógica capitalista de exploração do corpo e da terra, como se os recursos fossem ilimitados”.
A revolta contra a instalação da Juliana não é tão diferente do que aconteceu em Belo Horizonte no final de novembro. Um morador de um prédio entrou na Justiça para remover um belíssimo mural da artista Criola. O bolsominion alega que “não é uma simples pintura, é uma decoração de gosto duvidoso”. A obra, que se chama “Híbrida Ancrestral: Guardiã Brasileira”, mostra uma mulher preta, uma cobra coral e um útero.
“Gosto duvidoso” é a expressão na ponta da língua da maioria das pessoas que teima em censurar a arte. Uma leitora, a Marcia Mattos, comparou o fuzuê gerado por “Diva” ao famoso quadro de Courbet, “A origem do mundo”, uma obra de 1886 que ainda provoca escândalos. Mas por quê uma vagina seria tão polêmica? (Agora fiquei sabendo, através da Marcia, que o quadro já pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan, que o mantinha em sua casa de campo, atrás de um biombo).
Levou onze meses e a mão de obra de vinte pessoas para “Diva” ficar pronta. Teve bastante gente nas redes sociais pondo em disputa a autoria da obra. Afinal, se foram homens que cavaram, por que a artista seria a Juliana? Não sei se esse tipo de crítica é ignorância ou má fé. Por exemplo, um prédio do Oscar Niemeyer não foi construído por ele, e ainda assim o prédio é visto como sua obra. Um filme conta com uma equipe de centenas e às vezes milhares de pessoas, e, no entanto, geralmente é apresentado como “um filme de Steven Spielberg”.
Como bem lembrou uma leitora, a Karenzita, em Pernambuco há um outro monumento muito conhecida: a fálica Torre de Cristal, de Brennand, que os recifenses chamam de “Pica de Brennand”. Será que o artista fez sua obra sozinho ou contou com a ajuda de toda uma equipe?
Também não faltaram críticas a uma das imagens, uma selfie que Juliana postou no seu Facebook, em que ela, branca, posa com a equipe que fez a escavação: “Eu e a equipe estávamos em harmonia, mas quando você vê a imagem, realmente, ela mostra a diferença de classes, a racialização. Tirei a foto e na minha branquitude reafirmei um processo de trabalho típico do contexto brasileiro”, reconhece.
Como artista, Juliana está acostumada a polêmicas. Em “Mimoso”, performance de 2014, ela foi muito criticada por ser arrastada nua por um búfalo na ilha de Marajó, e por comer o testículo do búfalo castrado. Ela conta: “Realmente, era muito pesado. Mas nada como está sendo agora. A coisa extrapolou”. Juliana vem sendo atacada nas redes sociais.
Aqui o que ela escreveu no Facebook no penúltimo dia do ano:
Em meio a tantas rochas no meio do caminho desse ano distópico, finalmente termino o ano com a obra Diva pronta! Foi um processo longo, quase 11 meses de muita persistência, convivência e aprendizado.
Diva no final das contas é uma grande escultura feita à mão. Como demonstrou Roberto, o engenheiro arretado responsável pela obra (e que bota a mão na massa!), não era possível usar escavadeira, pq ela não permitiria esculpir com precisão os relevos que precisava. Por isso, foram mais de 40 mãos para fazer Diva nascer, mais de vinte homens trabalhando num esforço hercúleo embaixo do sol a pino, em meio a muita música e piada.

Diva é uma Land Art, uma enorme escavação em formato de vulva/ferida medindo 33 metros de altura, por 16 metros de largura e 6 metros de profundidade, recoberta por concreto armado e resina.

Em “Diva”, utilizo a arte para dialogar com questões que remetem a problematização de gênero a partir de uma perspectiva feminina aliada a uma cosmovisão que questiona a relação entre natureza e cultura na nossa sociedade ocidental falocêntrica e antropocêntrica. Atualmente essas questões têm se tornado cada vez mais urgentes. Afinal, será através da mudança de perspectiva da nossa relação entre humanos e entre humano e não-humano, que permitirá com que vivamos mais tempo nesse planeta e numa sociedade menos desigual e catastrófica.
Só tenho a agradecer por esse longo e rico processo. Agradeço a Bruna Simões Pessoa de Queiroz, Ricardo Pessôa Filho, C Mabel Medeiros e a Bárbara Maranhão por acreditarem e apostarem na ousadia do projeto.

Agradeço a Roberto Gatis pelo profissionalismo, paciência e sensibilidade (que contradiz a fama dos engenheiros) e a todos os homens que trabalharam na obra: Felipe, Ricardo, Bergue, Irmão Elias, Lilo, Nem, Lorinho, Garanhão, Nó, Jau, Fernando, Pó, Renildo, Nando, Pombo, o filho do irmão Telmo e os que agora não lembro o nome.

Vida longa à Usina de Arte, esse projeto lindo coordenado por Bruna e Ricardo que tem revirado a paisagem histórica e cultural neste ponto da Mata Sul pernambucana.

PS: Diva é fruto da minha residência artística na Usina e de um convênio da Usina de Arte e do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM).

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