O machismo até na tecnologia! Por que as assistentes virtuais são sempre mulheres?

O fato já vinha me incomodando. Bia, Vivi, Joice, Carina, Gisa, Alexa, Lu… “Por que assistentes virtuais, em sua grande maioria, tem nomes e vozes de mulheres?”, comecei a me perguntar. Antes mesmo de me aprofundar no assunto, já intuía o que comprovei nas minhas leituras: trata-se do reforço do papel historicamente mais servil da mulher, de estereótipos arraigados na figura feminina, como de cuidadora e subserviente.

O professor de comunicação da Universidade de Stanford, Clifford Nass, escreveu em 2005 o livro “Wired for Speech: How Voice Activates and Advances the Human-Computer Relationship” para esclarecer a questão. Foram 10 anos de pesquisas. Ele percebeu que as pessoas atribuem características humanas às interfaces de voz por razões relacionadas à evolução da humanidade. Neste contexto, a voz sintética feminina é percebida como capaz de ajudar a resolver nossos problemas, enquanto a masculina é “ouvida” como figura de autoridade que dá as respostas. Seria algo como evocar no ouvinte a imagem de uma mãe ou de um professor. De novo, estereótipos. Esta matéria na UOL é bem completa e traz mais detalhes: https://www.uol/noticias/especiais/assistentes-de-voz-x-feminismo.htm#mudanca-a-passos-lentos.

Questões desse tipo, que estão na esfera dos vieses inconscientes (ou não…), são muito perigosas. Podem, e de fato reforçam, realidades que lutamos tanto para mudar no tocante à igualdade de gênero. Essas assistentes, pela natureza do serviço, têm scripts com frases atenciosas, pacientes, compreensivas. Um estudo lançado em maio de 2019 pela UNESCO, chamado “I’d Blush If I Could” (“Eu coraria se pudesse”), constatou que, como as assistentes são programadas basicamente por homens (que representam 90% da força de trabalho na criação de Inteligência Artificial) e têm a premissa de estar sempre conectadas aos seus usuários, quando são verbalmente assediadas suas respostas são tolerantes, subservientes e passivas.

Mas o mundo não é cor-de-rosa. Existem pessoas que – acreditem – acessam essas interfaces e as ofendem, agridem, cometem assédio explícito. Brincadeira de extremo mau gosto ou algum tipo de perversão e desvio, não importa. Fato é que, mesmo sendo com uma máquina, é inaceitável qualquer tipo de abuso.

Por isso, aplaudo de pé a campanha da UNESCO “Hey, Atualize Minha Voz” (no original, Hey, update my voice) que tem o objetivo de “pedir às empresas que atualizem as respostas de suas assistentes virtuais para que não sejam subservientes e passivas, que tenham voz ativa e deem respostas sérias e educativas quando sofrerem qualquer tipo de assédio” (#HeyUpdateMyVoice). Como dizem no site: “Se isso acontece com elas, imagine o que acontece na vida real com mulheres reais”.

O Banco Bradesco foi um dos que aderiu ao movimento e está dando grande visibilidade a isso. Aplaudo de pé também, e muito. Em matéria ao Valor de 23 de abril, o banco informou que no ano passado a Bia, sua assistente virtual, recebeu 95 mil xingamentos, agressões verbais e propostas sexuais. 95 mil! Vejam o antes e o depois de algumas abordagens:

Falei pouco antes dos vieses inconscientes. Precisamos estar atentos e atentas a eles a todo momento. Segundo a consultoria Treediversdade, “Vieses inconscientes são geralmente definidos como tendências ou preconceitos de um indivíduo a favor ou contra uma coisa, uma pessoa ou um grupo, tendo em vista seus julgamentos, pensamentos e ideias relacionados a experiências passadas armazenadas no cérebro”. O nosso cérebro se acostumou ao longo de séculos a associar a figura masculina a poder, competência. E a feminina a fragilidade, insegurança. Estou generalizando, eu sei. Mas vocês entenderam o desenho.

Para lidar com essa carga tão violenta dos vieses inconscientes é preciso, antes de mais nada, admitir que todos nós os temos e devemos, portanto, vigiar nossos pensamentos e comportamentos. E agir, quando podemos. Fica então aqui o meu terceiro aplauso de pé, agora para o Sicredi (instituição financeira cooperativa), que conta com o Theo como assistente virtual. E olha que bela história: seu nome é uma homenagem ao padre Theodor Amstad, fundador do Sicredi e precursor do cooperativismo no Brasil. Bora mudar, mundo?

 

Artigo publicado no site Valor Econômico

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