Vaidade, arrogância e ignorância: crimes atribuídos à ‘magia negra’ e ocultismo são puro suco de racismo

 

No dia 06 de Abril de 1992, na cidade de Guaratuba, no litoral do Paraná, o menino Evandro Ramos Caetano, de apenas 6 anos de idade, desapareceu. Poucos dias depois, seu corpo foi encontrado sem as mãos, cabelos e vísceras. A suspeita: foi sacrificado num ritual satânico. Sete pessoas foram presas acusadas de cometer o crime. (leia mais)

Em maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu dois dias após ter sido espancada por dezenas de moradores de Guarujá, no litoral de São Paulo. Segundo a família, ela foi agredida a partir de um boato gerado por uma página de facebook que afirmava que a dona de casa sequestrava crianças para utilizá-las em rituais de magia negra. (leia mais)

Em 2017, duas crianças foram encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. O delegado Moacir Fermino assumiu o caso e afirmou se tratar de um ritual satânico, prendendo cinco pessoas após ter uma “revelação divina”. A polícia fez nova apuração e constatou ausência de provas. Todos os presos foram soltos. O delegado passou a responder a procedimento disciplinar e, em 2020, foi condenado a seis anos, dois meses e 17 dias de reclusão por montar uma farsa sobre os autores do homicídio. (leia mais)

No final do mês de abril de 2021, Patrícia Roberta veio passar o final de semana em João Pessoa, na casa de Jonathan Henrique dos Santos, no bairro do Gramame, na zona sul da Capital. O corpo de Patrícia foi encontrado dois dias depois, e Jonathan Henrique foi indiciado por feminicídio e ocultação de cadáver. No apartamento do acusado, foram encontrados livros, registros e material que apontavam indícios de magia negra e ocultismo. O que esses livros indicaram? De forma prática, absolutamente nada. Leia mais aqui.

Chegamos a junho de 2021. Um contingente de cerca de 200 policiais, incluindo agentes federais, buscam o assassino Lázaro Barbosa desde o último sábado numa área rural do município de Cocalzinho de Goiás. Ele está armado e é extremamente perigoso. A Polícia Civil foi até a casa de Lázaro e encontrou itens que indicam práticas de bruxaria e rituais de magia negra dentro do imóvel.

O que todos esses casos tem em comum, além do óbvio? A histeria coletiva provocada pelo medo do desconhecido, a irresponsabilidade dos agentes públicos, a sanha de certos setores da imprensa pelo tema, e o principal: muito preconceito baseado no mais puro suco de racismo.

Nesta mesma quinta-feira, 17 de junho, uma adolescente de 14 anos entregou para a polícia um vídeo onde aparece sendo estuprada pelo padrasto, de 44, e denunciou abusos sexuais cometidos por ele há pelo menos seis anos, em Praia Grande, no litoral de São Paulo. O suspeito disse que ‘algo o puxava à noite’ para cometer os abusos contra a enteada, e que era tudo culpa do diabo‘. Não existe qualquer menção sobre a religião desse homem. A culpa foi do diabo.

Quando pastores evangélicos ou padres católicos cometem crimes, seja de estupro ou mesmo assassinato, absolutamente ninguém menciona a má influência das religiões.

O primeiro código penal republicano, promulgado em junho de 1890, proibia no artigo 157 – “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim fascinar e subjugar a credulidade pública”. Ou seja, desde que nosso país começou de fato a se tornar uma sociedade independente, a perseguição contra religiões de matrizes africanas era, e continua sendo, constante. Por mais que a Constituição de 1988 tenha nos dado o direito de professar, ou não, qualquer tipo de fé, e que tenha declarado o Brasil como um Estado Laico, pouca coisa mudou.

Todos os crimes apontados nesse texto de fato aconteceram. Mas eles não foram obra da magia negra, ocultismo, bruxaria, ou qualquer termo que o valha.

Enquanto sujeitos sociais que convivem em coletividade, é compreensível querer atribuir algo “além do humano” para justificar situações tão abjetas. É ultrajante imaginar que um ser da nossa própria espécie seja capaz de violentar e assassinar crianças. Mas esses assassinos são humanos, como eu e você. E aqui pouco importa se são pessoas com distúrbios de psicopatia grave.

O fio da maldade humana e todos as gambiarras que estão inseridos nele passam pela ignorância (da sociedade) ganância (da imprensa), arrogância e vaidade (de agentes públicos). Pelo andar dessa nossa carruagem, esse fio vai continuar se desenrolado indefinidamente.

 

Taty Valéria

 

 

 

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