Estudo da Rede Feminista de Saúde mapeou perfil das meninas mães, com menos de 14 anos, no Brasil entre 2010 e 2019.
Em média, uma criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil, como apontam dados do estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná, divulgado com exclusividade pelo Portal Catarinas neste 12 de outubro, Dia das Crianças. “O estudo evidencia as violações ao direito de ser criança. O nosso dado é eloquente porque a criança teve um filho, então houve um ato sexual que não poderia ter ocorrido”, destaca Ligia Cardieri, secretária executiva da Rede.
Conforme o estudo “Estupro presumido no Brasil: caracterização de meninas mães em um período de dez anos (2010 – 2019)” nos últimos dez anos, entre 2010 e 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos, além de 12 meninas com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos. Isso representa uma média de 25.280 casos de gravidez de vulnerável por ano, ou 70 crimes por dia. Ainda, 4.948.724 adolescentes de 15 a 19 anos foram mães, o correspondente a 17% dos nascidos vivos.
Entre 2010 e 2019, 5.708 meninas paraibanas entre 10 e 14 anos foram mães. Apesar dos altos índices, houve uma queda nos registros: em 2010 foram 605 meninas e em 2019, o número caiu para 473. Todas foram vítimas de estupro presumido.
“Meninas que por falta de apoio, informação e acesso ao aborto legal acabaram por parir outra criança, e podem continuar expostas à atividade sexual sob coação, ou ser submetidas a casamento infantil, eventos que pela legislação brasileira constituem crime”, afirmam no levantamento que integra ação coletiva, coordenada pela organização Criola.
Longe de se tratar meramente de gravidez precoce, como se refere a estratégia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos voltada à abstinência sexual, estamos falando de estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217-A do Código de Processo Penal. De acordo com o qual, a relação sexual ou ato libidinoso com crianças e adolescentes de até 14 anos de idade constitui estupro de vulnerável, independente de ter havido consentimento.
Por envolver violência presumida e gravidez de risco — já que nessa fase o corpo não está completamente desenvolvido — esses casos são previstos em duas das três situações em que o aborto pode ser realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A anencefalia fetal é o terceiro permissivo que garante o direito ao procedimento.
Porém, a secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, afirma que, muitas vezes, a menina não é informada de que possui esse direito quando procura o sistema de saúde.
“O aborto em condições seguras é menos arriscado do que o Porém, a secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, afirma que, muitas vezes, a menina não é informada de que possui esse direito quando procura o sistema de saúde”.
As regiões brasileiras com maiores taxas de gravidezes infantis foram a Norte, com 1,5% dos nascidos vivos totais, e Nordeste, com 1,2%. As menores taxas estão no Centro-Oeste, com 0,8%, Região Sul e Sudeste, com 0,6% cada. Produzido neste ano, o levantamento compila os números atuais disponíveis no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), ambos do DataSUS, banco de dados do SUS.
O estudo identificou que a mortalidade materna afeta de forma mais grave e preocupante as meninas mães. A Razão de Mortalidade Materna (RMM) — que é o indicador utilizado para aferir mortes de gestantes por causas relacionadas à gravidez — foi de 62,57 por 100 mil nascidos vivos. Número superior à média de todas as faixas etárias, que é de 57,27 por 100 mil nascidos vivos no período de dez anos. Os dados completos por estado podem ser acessados na pesquisa.
As taxas mais elevadas foram encontradas nas regiões Nordeste, com 80,14 mortes para cada 100 mil nascidos vivos; Norte (72,58) e Centro-Oeste (66,01). Amapá lidera com 216,45 mortes por 100 mil nascidos vivos, seguido do Maranhão (152,74) e Piauí (148,42). O Distrito Federal, que não apresentou óbito materno de meninas mães, não por coincidência teve a menor taxa de meninas mães (0,4%) dentre todos os estados.
Tragicamente, a gravidez de muitas meninas mães também resultou em óbitos fetais. São 344 meninas por ano, em média, que tiveram um bebê natimorto, 3.448 em dez anos, representando uma taxa de 13,64 natimortos por mil nascidos vivos, maior que a taxa geral de óbitos fetais para todas as faixas etárias no Brasil, que foi de 10,72.
“Meninas e jovens que são abandonadas à própria sorte, com provável abandono escolar e um futuro mais difícil, sem muitas perspectivas (…) Ao longo da década, as mais de 250 mil meninas mães no Brasil vem arcando com o ônus do descaso da sociedade e dos governos que não enfrentam esta problemática com a prioridade que ela merece”, analisam no estudo.
De acordo com a secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, há toda uma rede de assistência que precisa dar respostas sobre esses números. “As unidades de saúde, muitas vezes, acompanham a gravidez dessa menina. O que elas têm feito? Elas ofereceram o aborto? Qualquer autoridade dentro da saúde, desde a equipe da ponta, o servidor de vigilância em saúde, os secretários de saúde devem ser cobrados. Além deles, têm também os conselheiros tutelares e os juízes da infância, eles têm olhado para esses dados?”.
No momento em que uma menina é mãe ocorrem três tipos de violações equivalentes à tortura, conforme denúncia do Cladem (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) na campanha internacional “Gravidez infantil forçada é tortura”, em 2016. “O primeiro, impondo um relacionamento sexual indesejável; o segundo, forçando-a a realizar uma gravidez que não procurou; e o terceiro, obrigando-a a ser mãe contra a vontade”, explica a campanha.
QUEM SÃO AS MENINAS MÃES
Como são crianças entre 10 e 14 anos, o grau de instrução das meninas mães se concentrou entre os 4 a 7 anos de estudo, ou seja, cerca de 63,8% das meninas tinham ensino fundamental incompleto, e apenas 28% frequentaram a escola entre 8 a 11 anos. O número de meninas com nenhuma escolaridade ou até 3 anos foi de 15.649, cerca 6,2%, ou seja um contingente elevado de meninas que nem ao menos conseguiu se alfabetizar e já tem um filho para criar.
“Os dados mostram que essas meninas são das regiões mais pobres, onde estudam menos, são mais desamparadas e com menos chances de apoio. Se essas meninas estivessem na escola e houvesse uma rede de proteção, o cenário poderia ser outro”, explica Ligia Cardieri.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), a América Latina é a segunda região com mais gravidezes infantis, atrás somente da África, continente em que o casamento infantil ainda é legalizado em vários países.
No Brasil, desde 2019, ano em que a Lei 13.811 alterou o artigo 1.520 do Código Civil, o casamento de menores de 16 anos foi impossibilitado em qualquer caso. Anteriormente, havia a possibilidade prévia de casamento a qualquer idade em casos de gravidez. As meninas mães mapeadas pela pesquisa da Rede Feminista de Saúde eram, na sua maioria, solteiras, representado 77,8%. Mas, apesar de terem entre 10 e 14 anos e estarem enquadradas na Lei 13.811, 19% delas, cerca de 48 mil, viviam em união consensual, e 1,3%, ou 3255 meninas, eram casadas.
PREVENÇÃO E APOIO
Conforme concluiu o estudo, após o crime consumado, cabe ao Estado monitorar e garantir apoio social a estas meninas vítimas do estupro, “uma vez que o governo, a família e a sociedade, de alguma forma, falharam ou se omitiram em prevenir a ocorrência das violências”.
Ao final do levantamento, a organização elencou cinco propostas para enfrentamento ao estupro presumido de meninas, são elas: o dimensionamento e acompanhamento das meninas até 14 anos que engravidam; integração dos serviços de atenção a saúde às vítimas sobreviventes de estupro; divulgação dos serviços de referência para atenção à violência sexual e para o aborto legal, e facilitação do acesso a eles; constituição de redes de proteção e planejamento intersetorial; e medidas preventivas em escolas, famílias e comunidades.
“O que também estamos dizendo com essa pesquisa é que cada município precisa saber mais sobre essas meninas e esses bebês. Elas aprenderam alguma coisa com esse parto, tiveram alternativas de contracepção, quem está criando essa criança? São todas situações que queremos colocar uma lupa em cima a partir do estudo, e que cada política local deve olhar para essa realidade”, defende Ligia Cardieri.
De acordo com o estudo, professoras/es, orientadoras/es e funcionárias/es de escolas têm papel central na identificação precoce de situações de abuso de menores e na prevenção. Isso, porque na maioria dos casos o agressor é parte da família, e a escola é considerada o lugar ideal para a intervenção.
A Secretária Executiva da Rede Feminista de Saúde também reforça a importância da educação sexual dentro das escolas.
“Quando pensamos em prevenção, o principal ponto que precisamos pensar é a educação, para conhecer o corpo, saber se estou sendo abusada e onde posso falar sobre isso. A escola tem papel fundamental para contrapor essa estratégia de abstinência sexual, a maioria dessas meninas não teve escolha de abstinência, são violadas”.
Com 30 anos de atuação, a Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos é uma articulação política nacional do movimento de mulheres, feminista e antirracista, integrada por organizações não-governamentais, grupos feministas e pesquisadoras.
O Portal Catarinas entrou em contato com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para questionar sobre as políticas e, respectivos orçamentos, voltados à assistência às meninas mães, assim como à prevenção do estupro de vulnerável, da gravidez na infância e adolescência, e da maternidade compulsória. Porém, não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
matéria especial do Portal Catarinas, da jornalista Daniela Valenga