Planos de saúde exigem autorização do marido para que mulheres usem DIU

Num dos episódios da série O Conto de Aia – que a história ficcional de um futuro distópico regido pelo fundamentalismo cristão e onde as mulheres são tratadas como cidadãs sem qualquer tipo de direito civil e  condenadas à uma vida miserável – uma das personagens se pergunta como foi que chegaram àquele ponto. A personagem principal, June, tem um flasback e relembra do dia em que foi comprar anticoncepcional na farmácia e foi informada que só poderia adquirir o medicamento com autorização do marido.

Nas cidades de João Monlevade, Divinópolis (Minas Gerais) e Ourinhos (São Paulo), a Unimed resolveu aplicar o cenário aterrador da série, onde o corpo da mulher pertence ao marido, e cabe à ele decidir por ela.

Sem se identificar, a reportagem da Folha de São Paulo entrou em contato por telefone com as três cooperativas da seguradora para confirmar a informação, que consta nos Termos de Consentimento para inserção do contraceptivo.

A informação de que não era possível realizar o procedimento sem o consentimento do cônjuge foi confirmada pela central de atendimento ao cliente das três unidades. 

Via assessoria de imprensa, as unidades de Divinópolis e Ourinhos informaram que abandonaram a exigência após o contato da reportagem. Já a cooperativa de João Monlevade nega exigir o consentimento, mesmo diante da confirmação da central de atendimento. A cooperativa afirma que apenas recomenda que o termo seja compartilhado, por isso o espaço para a assinatura do companheiro.

Outras cooperativas da Unimed chegaram a exigir a assinatura do cônjuge no passado, mas atualizaram o seu modo de operação – caso da Sul Capixaba, que atende 30 municípios no Espírito Santo.

O DIU é um dispositivo no formato de T que é introduzido na mulher através do colo do útero e tem como principal objetivo impedir a gravidez. A médica ginecologista Graciela Morgado explica que há dois tipos de dispositivos: os
não hormonais e os hormonais.  Os não hormonais, que são aqueles de cobre e prata, são utilizados para a contracepção. O hormonal é amplamente usado no tratamento dos sintomas de doenças crônicas como a endometriose.

A ginecologista afirma que a exigência do consentimento do cônjuge pode diminuir a qualidade de vida de mulheres com doenças para as quais o DIU é uma alternativa, uma vez que os homens passam a participar da decisão.

Há um prejuízo na independência dessa mulher que vai realizar um tratamento que vai promover qualidade de vida, pois ela passa a depender de um parceiro que talvez não entenda sua dor”, diz. “O DIU não causa uma infertilidade como a laqueadura, então não precisaria do parceiro para colocar como método contraceptivo.”

Para exigir a assinatura do marido, as seguradoras se amparam na lei 9.263 de 1996, que dispõe sobre o planejamento familiar. Ela estabelece que a realização de laqueadura tubária ou vasectomia deve ser feita somente com “consentimento expresso de ambos os cônjuges”, em homens e mulheres capazes e maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos.

A legislação é alvo constante de críticas por exigir o consentimento do parceiro nos casos de esterilização cirúrgica de pessoas casadas. A exigência da lei, porém, não contempla métodos contraceptivos reversíveis como o DIU.

Heidi Florêncio Neves, professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), afirma que esse é um uso indevido da lei, que viola a autonomia da paciente. “A lei diz que, em casos de esterilização voluntária, é preciso consentimento do cônjuge. Não é o caso do DIU, então não se aplica.”

A professora diz que as mulheres lesadas pela exigência podem entrar na Justiça para fazer com que a seguradora cubra o procedimento.

Em maio de 2018, o então marido de Karina Diniz, 34, teve que assinar o termo de consentimento do seguro saúde Cemeru, no Rio de Janeiro, para que a estudante de enfermagem pudesse colocar o DIU. Além da assinatura, era necessário que ambos reconhecessem o documento em cartório para comprovar que não haveria fraude.

“Voltei com o pedido médico na administração [do convênio] e a menina falou: ‘Você precisa da autorização do seu marido para poder fazer esse procedimento’. Eu até tomei um susto. Falei: ‘Ué, se eu estou decidindo, ele precisa autorizar?’. E ela disse ‘Tem que ter autorização dele. Você precisa ir a um cartório e reconhecer firma. Você e ele’”, conta. Karina e o companheiro já haviam conversado sobre o assunto, então não houve constrangimento. Ela conta que ele apenas estranhou situação. Entre sua primeira ida ao médico e o procedimento, foram cerca de dois meses.

“Quem sabe sou eu se eu quero ter filho ou não. Eu era casada e a gente tinha que entrar num consenso. Mas quem sabe disso sou eu. Quem tem que saber se eu quero engravidar ou não, sou eu. Então achei meio que invasão no meu querer.

A Cemeru foi procurada via email, mas não se manifestou. A

antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília) Débora Diniz afirma que a participação dos homens nesse processo decisório representa a alienação da autonomia reprodutiva das mulheres. “Há uma falsa presunção de que os corpos das mulheres, no que toca o seu aspecto reprodutivo, sempre dizem respeito aos homens aos quais elas são vinculadas”, afirma. “Isso pode não só agravar a situação de mulheres que vivem em violência como agravar uma visão de que as mulheres são propriedade dos homens.” Outro fator agravante, diz, é a quebra da
confidencialidade médica.

A Unimed do Brasil, representante nacional do Sistema Unimed, afirma que não adota qualquer orientação ou diretriz nacional que exija o consentimento do cônjuge para inserção do DIU.

A reportagem perguntou se a partir desses casos novas orientações seriam fornecidas, uma vez que poderiam existir outras instâncias de exigência equivocada entre as 342 cooperativas pelo Brasil, mas não obteve resposta.

 

da redação, com informações da Folha de S. Paulo

 

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