Como a pandemia afetou o sono e os sonhos dos brasileiros?

By 26 de abril de 2021Brasil

Anna* não sabe como chegou neste lugar, mas sente que precisa fugir com urgência. A empresária de 38 anos se vê dentro de um prédio que não conhece, onde todas as portas são fechadas por blocos de tijolos. A única maneira de escapar é descendo a escada que circunda o edifício pela parte de fora. Ela se aproxima da única janela, mede a distância e salta em direção à rota de fuga. Porém, de repente, o espaço até a escada aumenta. Anna cai no abismo. Ela acorda antes do impacto. “Se ver em um lugar desconhecido, do qual você precisa fugir, foi um dos sonhos mais comuns durante a pandemia”, conta o professor do departamento de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gilson Iannini. Com equipes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP), o psicanalista e filósofo analisou o relato dos sonhos de mais de mil brasileiros, nos primeiros quatro meses da pandemia. A ideia nasceu após pesquisadores constatarem, por meio das próprias redes sociais, que as pessoas estavam compartilhando cada vez mais as histórias do que haviam vivenciado durante a noite, em busca de alguma resposta.

“Na psicanálise, acreditamos que o sonhar é uma forma de o cérebro começar a processar as informações sobre o que estamos vivendo”, diz Gilson. De acordo com o pesquisador, o tema foi explorado pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial e durante a Gripe Espanhola. “Apesar de ser algo muito pessoal, Freud descobriu que em tempos de instabilidade, os sonhos podem compartilhar traumas coletivos.” Pouco mais de 100 anos depois, grupos que estudavam o tema em várias universidades se juntaram para analisar como o brasileiro enfrentava a pandemia no inconsciente.

Publicado pela Autêntica Editora, o livro Sonhos Confinados não só compilou alguns dos relatos mais angustiantes ou pitorescos, como foi além, para identificar certos medos e desafios compartilhados. “Para participar, os colaboradores preencheram um formulário, relatando o que sonharam, o que lembravam e como entendiam aquilo que haviam presenciado”, diz o professor, que divide a organização com Christian Dunker, Cláudia Perrone, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski. Cem destas pessoas tiveram sessões com psicanalistas voluntários, tanto para aprofundar a pesquisa quanto para buscar ajuda para a saúde mental. Um dos primeiros elementos que chamou a atenção foi a intensidade dos sonhos. Por meio dos relatos, os pesquisadores constataram que as experiências eram mais vívidas durante os primeiros meses da pandemia. Pela manhã, o que foi vivido durante o sono ainda estava muito presente. “Outro ponto importante foi a presença da mãe”, afirma Gilson. “Seja viva, morta ou há tempos sem contato, as mães eram figuras centrais nos sonhos, principalmente das mulheres.”

Assim como no cotidiano, transformado por decretos, novas pesquisas e indicadores que acompanhavam o desenvolvimento dos casos, o sonhar também foi mudando ao longo da pandemia. Com o passar dos meses, os pesquisadores detectaram, por exemplo, uma alteração na maneira como a ideia de casa era representada pelo inconsciente. O que era tratado como um ponto seguro, longe do vírus, foi lentamente sendo transformado em uma prisão. Novas palavras também foram aparecendo cada vez mais no sonho das pessoas, como pandemia, morte e Bolsonaro. “Uma pessoa relatou que, em um sonho, viu o presidente entrar sem máscara na sua casa, dizendo que o vírus era metafórico”, lembra o professor. “Porém, ele é transformado em pó pelos pets do sonhador, que se transformaram em Power Rangers.” De acordo com o pesquisador, figuras de políticos, como a do presidente do Brasil, costumam aparecer no sonho das pessoas. Entre 1933 e 1939, a jornalista alemã Charlotte Beradt coletou os sonhos de 300 moradores de Berlim, durante a ascensão de Adolf Hitler. Em 1966, ela publicou o livro Os Sonhos do Terceiro Reich. Já em 2016, a psicoterapeuta Martha Crawford coletou mais de 3 mil sonhos relacionados ao então candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump. Os relatos foram compilados em um blog, batizado de “45 sonhos”. A máscara também se tornou algo mais frequente com o passar do tempo. Na visão dos pesquisadores, o constrangimento enfrentado pelas pessoas ao sonhar após saírem sem o equipamento de proteção seria o equivalente desta década de sonhar com nudez em público.

Todas as descobertas feitas pela equipe foram divididas e analisadas em sete capítulos divididos de acordo com o tema que abordam, indo desde política aos sonhos de jovens da periferia de São Paulo. A pesquisa, porém, não parou por aí. Novos relatos estão sendo colhidos pelos pesquisadores, e algumas das pessoas continuam sendo acompanhadas pelos psicanalistas. Agora, Anna já não tem mais sonhos tão intensos, como o do prédio com as escadas do lado de fora. As suas noites parecem mais com um breu. “No começo da pademia, os relatos tratavam de cenas mais angustiantes. Agora, a angústia da mente foi para o corpo.” Outro grupo que passou a ser estudado são os profissionais da linha de frente do combate ao novo coronavírus, que há 14 meses vivem em contato direto com a pandemia, lidando com a morte e o medo da escassez de equipamentos. “Nós também vivemos uma epidemia da saúde mental. Com esse trabalho, prestamos ajuda para pessoas que estão precisando de serem ouvidas”, diz. O novo material ainda está sendo ouvido e compilado pelo grupo, que pretende publicar uma nova edição com as descobertas. Quando perguntado pelo título, Gilson Iannini brinca: “Seria legal se o nome pudesse ser o mesmo do nosso grupo de WhatsApp: Sonhos Vacinados. Tomara que a situação esteja melhor até lá”.

 

Da Revista Encontro

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