Parto humanizado na rede hospitalar: um caminho possível de respeito e acolhimento

Hallinne Araújo: arquivo pessoal

Por décadas, o Brasil foi campeão de uma marca vergonhosa. De acordo com a pesquisa ‘Nascer Brasil’, realizada pela Fiocruz, 88% dos partos realizados na rede particular são cesarianas. Pelo SUS os números chegam a 46%. “A recomendação da OMS aponta que o número de cesarianas não excedam 15% do total de partos, pois estudos internacionais vêm demonstrando os riscos das elevadas taxas de cesariana tanto para a saúde da mãe quanto a do bebê”, afirma o estudo, realizado entre 2011 e 2012.

A pesquisa Nascer Brasil acompanhou 23.894 mulheres e seus bebês em estabelecimentos de saúde públicos, conveniados ao SUS, e privados, que realizaram mais de 500 partos por ano, entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012. Foram coletados dados em 266 hospitais de 191 municípios, incluindo as capitais e algumas cidades do interior de todos os estados do país.

A divulgação desses dados acendeu o sinal de alerta sobre os procedimentos utilizados num dos momentos mais sensíveis e significativos da vida de uma parturiente, e a partir de campanhas de conscientização e de muitos debates nacionais, que envolveu pesquisadores, profissionais de saúde e sociedade, a mentalidade sobre qualidade na hora do pré, parto e pós parto evoluiu de forma significativa.

O conceito de Parto Humanizado demorou para fazer parte do planejamento das futuras mães. O medo de passar por alguma experiência de violência obstétrica, o “conforto” de poder escolher o dia e a hora do nascimento do bebê aliado à narrativa de médicos e médicas obstetras, levavam às mães a optar por uma cesariana ainda no início da gestação.

Para além do conforto em se escolher a data e a hora do parto e de escapar de eventuais violências, a mercantilização da cesariana incluía motivos superficiais, para dizer o mínimo: poder ajeitar o cabelo e a maquiagem, encomendar as lembrancinhas já com o dia do nascimento, até a escolha do signo do bebê. E ao contrário do que prega a cartilha dessa mercantilização, a cesariana oferece riscos à mãe e ao recém nascido.

Entre esses riscos estão como embolia pulmonar, hemorragias, infecções, trombose, aderência de alças intestinais e bexiga no útero, lesões na bexiga. Para o bebê, os principais riscos de uma cesariana se apresentam quando a cirurgia é feita antes de completar o termo (37 semanas) e normalmente fora de trabalho de parto, o que pode aumentar problemas respiratórios e disfunções do aparelho digestório, entre outros.

Aline Mendes, médica de 32 anos, sabia desses riscos. “Por ser da área da saúde, tinha consciência dos problemas que poderiam surgir tanto para mãe quanto para o RN. Além disso, sei que cuidar de um bebê super dependente estando em um pós operatório seria muito pior e mais doloroso que após um parto vaginal”.

Primeiro passo para o parto humanizado: buscar informações

Andreia, engenheira civil de 28 anos, não conhecia ainda o conceito do parto humanizado, mas sabia exatamente o que não queria. “Eu não queria ter uma experiência de violência obstétrica, mas sonhava com um parto normal. Pesquisei muito, fiz cursos online e comecei a enxergar tanto a parte da humanização quanto a parte espiritual que que o parto requer”.

Bruna Athayde: arquivo pessoal

Informação e conhecimento não bastam, é preciso encontrar profissionais, hospitais e maternidades que apoiem e respeitem a decisão da mãe, e isso ainda é raro. “Fui acompanhada por uma médica até metade da gestação, e ao ser indagada sobre a via de parto que eu queria, desconversava e dizia que era assunto mais pro fim da gestação. Entendi que não era seu perfil de assistência e que havia ‘perdido’ metade do meu pré-natal com uma profissional que não estava alinhada com meus desejos para o parto”, disse a arquiteta Bruna Athayde, de 31 anos.

 

Halline Araújo, arquiteta de 35 anos, se sentiu desconfortável desde as primeiras ultrassonografias. “Se constatou que meu filho era GIG (grande pra idade gestacional) e minha médica começou o terror de que eu ia ‘parir um menino enorme’. Ela falava abertamente que não existia isso de profissional não humanizado e que se preciso, faria a episiotomia, meu maior medo”.

Episiotomia é um corte no períneo (conjunto de músculos próximos a vulva e ânus) ao final do parto, no período expulsivo, já quando a cabeça do bebê começa a sair. Essa manobra foi abolida pela Organização Mundial da Saúde e pelo próprio Ministério da Saúde.

E qual o papel da doula nesse processo?

Ana Carla, doula desde 2016, explica que dentro desse cenário, a profissional é um dos 3 pilares que garantem o parto humanizado. “A doula é uma ferramenta humanização do parto, junto com a atuação de uma equipe multidisciplinar, medicina baseada em evidências e a autonomia e protagonismo da parturiente”.

Para Mariana Gonsalves, que atua como doula a 7 anos, a profissionalbrun surge como “um resgate da presença feminina no momento do parto. Cuidar é uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização, comprometimento social e envolvimento afetivo com aquela gestante”.

“Faz parte do nosso trabalho garantir que a gestante tenha conhecimento de seus direitos, para que possa reivindicá-los e assim assegura-los, na perspectiva de trazer uma experiência de parto com respeito e acolhimento”, complementa Renata Ferreira, doula desde 2016.

O trabalho das doulas no sentido de garantir esse acolhimento e respeito às vontades das gestantes e parturientes, apesar de ter uma importância significativa, ainda não recebe o reconhecimento merecido.

De acordo com Mariana, ainda não há um entendimento do papel que a doula exerce, e Renata corrobora com essa afirmação. “Não apenas pelo restrito conhecimento sobre nosso real papel, mas, também pela questão corporativa imposta por algumas organizações profissionais”.

Todas as doulas entrevistadas apontaram situações desconfortáveis que foram submetidas durante o acompanhamento de partos em hospitais. Nessas situações, cabe a diplomacia. “Buscamos resolver tudo de modo a afirmar que o direito à ter a presença da doula é da mulher, sendo diplomática e estratégica para que o cuidado, bem como a garantia de seus direitos e desejos não sejam prejudicados”.

Apesar dos percalços, as profissionais garantem que o cenário, tanto na cultura do parto humanizado, quanto no acolhimento hospitalar, vem melhorando ao longo dos anos. “Vejo que os hospitais e maternidades estão se adaptando, oferecendo equipamentos e condições físicas que permitam condições para o trabalho de parto e parto”, diz Renata.

Para Mariana, é “extremamente necessário investir em formações, qualificações, treinamentos e vivências para toda equipe que presta assistência aquela gestante e parturiente”. Finalizando, Ana Carla também endossa a melhor qualificação dos profissionais

A Associação de Doulas da Paraíba (ADPB) vem desempenhando um papel importante na busca de articulações e diálogos, num trabalho constante no sentido de divulgar e promover conhecimento quanto ao papel da doula no cenário da Política de Humanização do parto e nascimento.

A importância do obstetra

Yara Villar, médica obstetra desde 1989, é das poucas profissionais em João Pessoa que atuam dentro do conceito da humanização do parto na rede hospitalar e afirma que muitos médicos resistem a mudanças. “Hoje, o parto foca no trinômio: mãe, feto e família e equipe multiprofissional, e a paciente passa a ser centro das atenções”

Tendo em vista as mudanças na mentalidade das mães, o ambiente hospitalar teve que sofrer mudanças para se adequar a sala de parto PP (pré parto e parto) com banheira, barras, bolas, jogo de luz e cores, música ambiente, banho morno. Todo o aparato para que o momento do parto seja o mais tranquilo e confortável possível.

Dra. Yara também deixa claro que a humanização do parto vai muito além de um parto vaginal. “Em determinadas situações a cirurgia cesariana é necessária, e é importante que essa intervenção não seja demonizada, pois ela salva vidas, e mesmo um ambiente cirúrgico pode ser humanizado”.

Foi o caso de Lidiane Gonçalves, jornalista. Por uma condição pré existente, ela não poderia realizar um parto normal, mas queria que seu momento fosse humanizado. “Escolhemos uma playlist nossa, a luz da sala de cirurgia ficou mais baixa, meu marido ficou ao meu lado e quando minha filha nasceu, tive o privilégio de poder ficar com ela nos meus braços por um tempo significativo”.

Lidiane, ao contrário das outras entrevistadas, não optou pelo acompanhamento da doula, mas afirma que a presença do companheiro durante todo o processo de gravidez e parto, trouxe todo o acolhimento, carinho e proteção que ela precisava.

Luciana: arquivo pessoal

Luciana, professora de inglês de 37 anos, resume seu momento de forma significativa. “Fui acolhida, tinha meu marido, a doula e uma médica que me respeitou. A lembrança da dor passou muito rápido. Ficou a lembrança de um dia muito bonito, onde me senti uma mulher forte, capaz de fazer qualquer coisa e penso nas minhas irmãs que tiveram experiências ruins, que deixaram traumas. Como essas práticas ainda acontecem. Só tenho lembranças boas de todo o processo.”

Também é consenso entre as entrevistadas que as experiências positivas de parto humanizado só foram possíveis porque elas representam um recorte social específico.

“Logo de cara escolhi uma médica que sabia que iria me respeitar, e juntas iríamos caminhar os 9 meses. Não tive dificuldade, tive acesso a informação e sabia qual caminho percorrer. Decidi por um parto que fosse meu e de minha filha e não conveniência médica. Meu desejo é que todas as mulheres tenham essa assistência e que sejam respeitadas”, afirma a arquivista Verônica Ismael, 34 anos.

O Brasil ainda é campeão de violência obstétrica e as mulheres negras são ainda mais atingidas. Fazer do nascimento uma experiência humana e sem traumas, ainda é uma das grandes tarefas do poder público, da classe médica e da sociedade.

Taty Valéria

 

 

 

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