Artigo: SETENTA E CINCO POR CENTO

Por Priscila Werton

Quem me acompanha no instagram deve ter visto que minha casa está em reforma e minha vida está uma bagunça porque, entre outras coisas, estou sem uma cozinha funcionante. Vendo esse cenário de logística complicada, um boy se ofereceu pra fazer comida pra mim e tivemos uma conversa que parecia ser inofensiva e engraçada, mas acabou por me mostrar aspectos muito infelizes sobre a cultura do machismo que estão presentes na minha vida. Na conversa ele se oferecia para fazer minha comida da semana, mas a questão não era apenas cozinhar, era sobre o planejamento e a execução das tarefas do cuidado que fazem parte da vida de um indivíduo ou de uma família, tema que discorro a seguir.

Trinta anos, alguns relacionamentos no currículo e atualmente solteira, tive a epifania de que nenhum homem que passou pela minha vida até hoje cuidou de mim suficiente para planejar e executar tarefas inerentes a minha sobrevivência como cozinhar minha comida. Ninguém deve esperar cuidado do outro, fato. Todos devemos ser auto suficientes no aspecto do cuidado individual: ser feliz sozinho, conseguir executar tarefas básicas de sobrevivência como cozinhar e cuidar da casa, organização financeira e outros. Ninguém deve esperar que o outro vá fazer isso por você, é a sua vida e você deve ser capaz de fazer isso sozinho. Mas entender que nenhum homem já cuidou de mim assim me deixou triste porque apesar de não ser obrigação de ninguém, é triste perceber que as pessoas não cuidam umas das outras. Ou pelo menos os homens não.

É cansativo pensar que as funções do cuidado são destinadas a mulheres. As mulheres fazem no mínimo 75% do trabalho total do cuidado em uma relação. Considerando que planejar é 50% do esforço e que ambos deveriam dividir também o planejamento e que a mulher planeja a sua parte e a do homem e executa a sua parte (e às vezes a dele também), então à ela cabe ao menos 75% do todo. Mas por que eu normalizei o fato de homens não planejarem e/ou executarem ações de sobrevivência quando em convívio comigo? Afinal, é completamente normal que a mulher ocupe esse lugar de planejamento, mas aí quando um cara resolve fazer isso, o que não é mais que o mínimo, além de ser inédito na minha vida, me deixou completamente sem saber como lidar.

Alguém pode achar que relacionamentos são sobre cuidar um do outro, mas cuidar pode ser dar um presente, levar pra fazer um passeio, fazer um carinho, variadas são as vertentes do cuidar. O planejamento  das tarefas relacionadas à sobrevivência não é tão óbvio assim. Será que a moeda do sexo paga tudo? Depende. Quando é uma mulher que cumpre todas as funções de administração e execução, o homem oferecer apenas sexo é tratado com naturalidade, o cuidado é esperado da mulher, se for a situação oposta é não usual. Conheço algumas famílias em que a mulher sustenta financeiramente o lar, faz o planejamento das tarefas, executa, e a função do marido é apenas ser o gostoso provedor de sexo, nesse caso a moeda do sexo pagou, o problema é que esse acordo não foi consensual, à mulher foi imposta essa situação.

Curioso já que modelos de família patriarcal, mesmo alguns mais modernos, reproduzem até hoje estruturas de cuidado femininas em que a mulher planeja e executa todo o cuidado: saúde, alimentação, educação, bem estar dela, do marido e dos filhos e o marido planeja a parte financeira, em geral. Mas o cuidado financeiro de outra época, que estava disfarçado de dominação da mulher, com a emancipação monetária da esposa se transformou em domínio e manipulação psicológica e o que antes eram planejamento e execução das tarefas do lar, hoje ainda se soma ao sustento financeiro vindo da mulher em um movimento contrário do que se esperaria, a mulher em vez de ser menos responsabilizada após a sua liberdade financeira, pode ser ainda mais.

Ano passado por uma época dessas escrevi uma coluna falando sobre casos de feminicídio aqui na Paraíba e notícias tristes para as mulheres do Brasil, esse ano na mesma época estou eu mais uma vez lamentando imensamente a morte de uma moça. Esse texto era pra ser mais leve, mas não foi possível. Uma jovem que tinha um namorado, um relacionamento estável em que ela sustentava ele (provavelmente mais do que “só” financeiramente), quando decidiu que não queria mais se submeter a isso, o rapaz decidiu matá-la e matar a si mesmo em seguida. Até quando os homens vão achar que são nossos donos e que estamos aqui para servi-los? Mais um março de luto pelo feminicídio. Como discutir a divisão igualitária das tarefas de sobrevivência se os homens não nos permitem sequer sobreviver?

O arranjo familiar ultrapassado que se estruturou em um supostos cuidado e proteção paternos, nunca foi sobre cuidado, foi sobre posse da mulher e esse lugar de homem dono da mulher persiste no imaginário masculino. Fiquei pensando nisso…talvez eu tenha me visto em uma situação tão inusitada porque os relacionamentos que já tive me deixaram com medo de mais uma vez me ver em situação de objeto de posse. Por medo do domínio do passado hoje me privo do cuidado? É paranoia da minha cabeça ou tô só preservando minha liberdade conquistada?

A divisão das tarefas do cuidado está tão distorcida que uma mulher coach recentemente teve um vídeo viralizado em que dizia que lavar a louça e cuidar da casa são tarefas que possuem energias femininas e que colocar homens para fazê-las seria castrá-los. O problema começa em ter que colocar um homem para fazer uma tarefa que deveria ser feita por iniciativa dele mesmo, o planejamento, segundo que eu tenho muita pena dessas mulheres que tiveram suas vidas encabrestadas a acharem que suas funções existenciais estão atreladas ao cuidado dos homens, a execução.

Quando Lula assumiu o comando do Brasil novamente falou que ia cuidar do país e essa fala foi muito tocante, mas se tivesse vindo de uma mulher teria o mesmo impacto? A gente se impressiona ao ouvir uma mulher dizendo que vai cuidar de algo ou alguém? Parece uma tarefa que ela já é “obrigada” por natureza a fazer, lugar comum. Recentemente ainda teve a situação bizarra de um homem que foi rejeitado por uma mulher mais velha, divorciada e com filhos em um reality show e agora faz fama na internet “ensinando” outros homens a direcionarem ódio a mulheres, principalmente às mais velhas, divorciadas e com filhos. Como se isso já não fosse incitar violência contra mulher, ele ainda ameaçou uma mulher maravilhosa, inteligente, bem humorada, sagaz e culta que riu dele na internet, claro porque esse recalque dele seria hilário, se não fosse trágico.

Feliz dia da mulher para os homens, que são os verdadeiros sortudos em nos ter em suas vidas para cuidá-los.

 

@priscilawerton é médica, feminista e defensora do SUS

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