Duas jornalistas que denunciaram o ex-repórter especial da TV Record Gerson de Souza, 64, revelam pela primeira vez os detalhes do que passaram na redação. Souza foi condenado em primeira instância a dois anos e meio de prisão por importunar sexualmente colegas mulheres. A pena de prisão do jornalista foi convertida em prestação de serviços comunitários e multa de dez salários mínimos, cerca de R$ 13 mil.
As jornalistas revelam, agora com a sentença nas mãos e após quatro anos de espera, situações como beijo forçado e comentários e provocações de cunho sexual. “Ele abria os dedos em V, sacudindo a língua, imitando sexo oral”, disse uma delas.
Em depoimento à polícia e à Justiça, Gérson de Souza negou as acusações. Afirmou ser vítima de revanchismo por ter feito críticas ao trabalho de uma das mulheres que o denunciarem. A única vez que se posicionou publicamente sobre as denúncias foi em maio de 2019, em seu Instagram, alegando que as denúncias não eram verdade. “Confio no trabalho da polícia para esclarecer os fatos. Em respeito à minha família e ao trabalho policial, só me manifestarei por intermédio de meus advogados”, escreveu na época.
A juíza do caso ouviu vítimas e 20 testemunhas e afirma, na sentença, que pelos relatos de ações e comentários dele “verifica-se sua vontade consciente de praticar atos libidinosos”. Procurada, a defesa de Souza nega as acusações. “Não há uma prova sequer que corrobore essas alegações”, disse à reportagem a advogada Beatriz Esteves. Também contesta a condenação, alegando que houve “falhas técnicas graves” no processo e que as mulheres agiram por “com nítido objetivo de vingança”.
A advogada entrou com recurso no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Veja abaixo o que as mulheres, que não quiseram se identificar, contaram em depoimento ao portal Universa.
“Beijo roubado é mais gostoso”
Bruna* trabalhava havia um ano como produtora na Record quando passou a ter contato direto com Souza, um repórter especial que fez carreira na emissora. Desde então, conta ela, passou a se esquivar dele para evitar comentários inadequados, como quando ele dizia: “Se eu te pego, você não anda no dia seguinte”. Isso era 2010, e foram anos de abordagens constrangedoras até que, entre o fim de 2018 e início de 2019, Bruna diz que houve um episódio mais grave. Naquele dia, quando chegou à redação, ele aproximou-se dela, que estava de costas, e forçou um beijo.
“Beijou minha boca. Na hora, falei: ‘Meu, você está louco? O que você fez?’ E aí ele respondeu: ‘Roubado é mais gostoso’.” Ela conta que tentou comunicar a seus superiores o que tinha acontecido, mas eles teriam se esquivado, por isso passou a recorrer ao marido, que também tinha um cargo na emissora, para se proteger. Minha chefe respondeu que ele ‘era assim mesmo’ e que era brincadeira [dele]. [Disse] que outro dia ele tinha pegado nos peitos dela e que era normal. Que era só dar um corte. Então chamava meu marido para ‘dar um oi’ e ver se o Gerson parava.
Já Fernanda*, que também era produtora na Record nesta época e trabalhou durante sete anos ao lado de Souza, lembra que assim que o repórter chegava na redação, começava a pegar nas mulheres. “Apertava o braço e dizia que gostava [dessa parte] porque parecia pele da bunda. Essa era clássica. Acontecia em plena luz do dia e na frente de todo mundo.” As duas afirmam que o jornalista tinha o costume de tomar sorvete simulando sexo oral, enquanto encarava as colegas mulheres. O comportamento seria tão descarado que Souza ganhou o apelido, segundo elas, de “Gerson Mayer”, em referência ao ator José Mayer, acusado de assediar uma figurinista da TV Globo em 2017.
Ainda assim, ambas tinham medo de denunciá-lo. Além de não terem sido ouvidas pela chefia, ele era um jornalista com um “status superior” mesmo que não houvesse uma hierarquia formal, segundo depoimentos em trechos da sentença. “É muito difícil reagir a um assédio” Não bastassem os episódios de importunação, Bruna soube, por colegas, que Souza estaria criticando seu trabalho publicamente. “Fui questioná-lo: ‘Gerson, por que você está falando de mim pelas minhas costas? A gente se conhece há tantos anos, por que não vem falar comigo? O que está te incomodando?’ O cara começou a gritar e falar cuspindo na minha cara, me chamando de incompetente.”
Era maio de 2019 quando ela, depois de hesitar, decidiu denunciá-lo formalmente ao RH da TV Record. Ela relatou os comentários feitos por ele sobre o trabalho dela e as situações de importunação. Depois, passou a se esconder no banheiro para evitar cruzar com o colega. “Até então, eu não tinha noção da gravidade [do beijo]. Para mim, pegou quando, a partir do momento em que eu ‘dei um fora’ nele, ele passou a detonar meu trabalho”, diz. É muito difícil reagir a um assédio e entender na hora o que está acontecendo. Você não quer arrumar um problema no ambiente profissional.
“Uma van levou todo mundo para a delegacia”
Uma semana depois, foi procurada pelo diretor de RH e pelo chefe do Departamento Jurídico da emissora. Eles perguntaram se ela tinha alguém que corroborasse o que tinha contado e a orientaram a fazer um boletim de ocorrência. “Eles me falaram que aquilo [o beijo] era um crime, que a Record me apoiaria e que eles ficariam ao meu lado”, disse Bruna.
“Disseram: ‘Tem um carro aqui na porta esperando vocês’. Fomos eu e minha editora, sem bolsa, sem documento, sem nada, para a delegacia junto com o advogado deles. Eles imprimiram nossos documentos, porque não deixaram a gente voltar para pegar. Não tivemos tempo de consultar um advogado nosso, de pensar em ir a uma delegacia da mulher, de consultar qualquer pessoa. Simplesmente fomos colocadas dentro do carro e foi. Eu não tinha noção do que estava por vir.” Dias depois, elas contam que uma van, organizada pela Record, levou um grupo de funcionários da sede da emissora, na Barra Funda, para prestar depoimento como testemunhas no 23º Distrito Policial de Perdizes, na zona oeste.
A Record foi procurada para comentar o caso, especialmente sobre as vítimas alegarem que foram levadas para a delegacia sem estarem preparadas para isso, mas não se pronunciou.
Segundo a advogada Isabela Del Monde, especialista em direitos da mulher, o procedimento relatado vai contra as melhores práticas antiassédio, porque o B.O. deve ser tratado como direito, não como um dever. “Me parece que houve uma coação para acionar a polícia, mas sem preparo. Isso é um dano para mulher porque ignora o trauma”, explica. “Sempre recomendamos que elas estejam acompanhadas de advogadas ao irem à delegacia.” Afastamento e demissão Logo após a primeira denúncia, ainda em maio, Souza foi afastado pela Record. Mas, segundo as jornalistas, ele voltou à redação algumas vezes, mesmo com elas por lá. A reportagem também perguntou sobre isso à emissora, mas não houve resposta.
Em outubro, quando virou réu na Justiça, ele foi demitido. A advogada de Souza diz que “as acusações são inverídicas”, feitas após desentendimentos profissionais para “manchar a reputação de um homem íntegro”. A defesa alega que “chamou a atenção o fato de que o registro do boletim de ocorrência foi realizado justamente um dia depois da discussão profissional, em óbvia retaliação” e também alegou que testemunhas ouvidas “retrataram Gerson como uma pessoa respeitosa e excelente profissional” e “relataram ao juízo a insatisfação com o trabalho” de Bruna. Bruna afirma que o boletim foi feito nesta data por decisão da Record.
“Conforme demonstrado no processo, a Record realizou investigação interna e não identificou qualquer reclamação em face de Gerson junto ao RH ou a área de compliance durante todo o período em que trabalhou na emissora”, diz, em nota, referindo-se à inexistência de outras denúncias contra ele. Fernanda, que também diz ter sido alvo da importunação de Souza desde que entrou na emissora, em 2014, tomou coragem de denunciar o colega depois que Bruna fez o B.O. Ela estava na van que foi até a delegacia.
“Os amigos dele me chamavam de bandoleira”
Depois que o processo começou a andar, Bruna e Fernanda afirmam que passaram a sofrer boicote por parte de amigos de Gerson de Souza dentro da redação. “Passei cinco meses dentro daquela redação, trabalhando com pessoas que não falavam comigo, escutando mulheres me desacreditando e homens me chamando de vagabunda, bandoleira, louca. Vi meu nome de jornalista conceituada virando ‘a mulher filha da put*’ que denunciou o Gerson”, diz Bruna. Para Fernanda, que pediu demissão em 2021, virou “uma guerra deles contra nós”. “Ficou totalmente insustentável, um grande caos”, diz Fernanda.
Antes gostavam do meu trabalho e me elogiavam. Depois, começaram a me boicotar, ignorar, falar mal, postar vídeos nas redes sociais com indiretas sobre pessoas sem caráter. Não virei uma má profissional nesse meio tempo. O clima contribuiu, segundo Bruna relatou à Justiça, para que ela desenvolvesse episódios de enxaqueca, úlceras e duas doenças autoimunes: vitiligo e doença de Crohn. Ela também apresentou um diagnóstico de depressão. Ela foi afastada por licença médica após uma crise de ansiedade e voltou ao trabalho em março de 2020, quando foi realocada em outra equipe. Em junho, foi demitida. ”
Levava comida e comia fria dentro do carro, porque eu não tinha coragem de ir ao refeitório esquentar. Queria sumir. Não sei como aguentei”, diz. Quando foi demitida, ficou em choque. “Nem me deixaram pegar minhas coisas, só me acompanharam até o RH. Pedi para falar com o diretor de jornalismo, porque estava em período de estabilidade, mas ninguém veio me atender e tive de assinar minha demissão.” Para Tainã Góis, especialista em direito do trabalho e gênero, chamam a atenção o fato de as vítimas parecerem ter sido desacreditadas pela chefia da emissora e a falta de um canal direto de denúncia, mesmo que anônima. “As empresas têm obrigação de manter o ambiente saudável para seus funcionários, coibir e prevenir o assédio sexual e lidar diretamente com as denúncias, não deixar só para a polícia ou para a Justiça”, diz.
“Não somos loucas”
Quatro anos depois da denúncia e agora com a condenação em primeira instância, Bruna e Fernanda não se consideram vitoriosas, porque ainda precisam lidar com todas as consequências do tempo em que passaram na redação vivendo a importunação. “Mas a sentença foi a constatação de que, aos olhos da Justiça, nós não somos loucas”, diz Fernanda. “Não pedimos nada, nem um real, porque só queríamos que ele assumisse o erro. Essa é uma forma de mostrar que estávamos certas o tempo todo. Não era coisa da nossa cabeça”, afirma Bruna.
A Record foi procurada por e-mail, WhatsApp e por telefone desde o dia 27 de abril, mas não atendeu à reportagem nem respondeu ao pedido de entrevista. Caso a emissora se manifeste, este texto será atualizado.
*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.
do portal Universa