A pedofilia normalizada que vivíamos. Ou ainda vivemos?

A pedofilia normalizada que vivíamos. Ou ainda vivemos

Na adolescência, aquela fase entre os 12 e os 17 anos, eu era a típica menina “feia” da turma. A “negrinha do cabelo ruim”, magrela demais, alta demais e sem atrativos, o que me deixava à margem quando comparada às minhas colegas de mesma idade. E eu lembro muito de uma frase que eu repetia porque retratava a minha realidade de menina cheia de hormônios, querendo carinho e afeto mas sempre rejeitada ou ridicularizada: “eu só faço sucesso entre os véi (sic)”. Uma pausa para um suspiro de lamento. Eu repetia isso porque, ao receber indiferença ou mesmo risadinhas irônicas dos meninos que eu vinha a gostar ou me interessar, eu recebia assobios e elogios dos homens mais velhos que sentavam nas praças por onde eu passava no caminho entre minha casa e a escola.

Eu estudava no centro da cidade, precisava me aventurar em ônibus e andar pelas ruas da cidade longe da proteção dos meus pais. E lembro com muita clareza dos senhores que frequentavam a Praça da Bandeira no horário de saída das crianças da escola. Eram senhores acima de seus 40 anos assediando crianças e adolescentes à luz do dia. Lembro dos assobios, das piadinhas, até da passada de mão desses imundos.

Era Praça da Bandeira, luz do dia, centro da cidade, anos 90 e início dos anos 2000. Não era no submundo da internet, não era às escondidas. Todo mundo via! Todo mundo sabia!

Por um tempo eu achei que esse seria meu destino: me relacionar com um homem mais velhos. Eu não fazia ideia do que era assédio, pedofilia, ninguém nunca havia falado comigo sobre sexualidade, direitos, proteção, sobre a minha beleza. Eu tinha medo, tinha raiva, mas também não tinha a quem recorrer. Era normal, todo mundo sabia que isso acontecia. Eu sonhava todos os dias com romances, meninos que me olhassem com afeto, mas recebia piadinhas deles e elogios de pedófilos.

Eu estava vulnerável. Eu não tinha maturidade para entender a gravidade de nada daquilo.

Mas encontrei meu lugar. Eu descobri meninos que me olharam, dei o meu primeiro beijo aos 14 anos. Para isso foi preciso andar em locais onde eu teria pessoas como eu: negras, da periferia, parando de sonhar com padrões que jamais foram feitos para mim. Eu não era feita para o mundo da Barbie.

Tudo isso foi construção e desconstrução. Foi carne cortada e pedra lapidada. Mas as marcas do assédio demoraram tanto a serem compreendidas, como a irem embora. E hoje a minha luta é para que meninas, como eu já fui um dia, saibam se defender, apontar os seus abusadores e que a sociedade esteja definitivamente engajada em proteger a infância e a adolescência dessas meninas.

Por que eu escrevi isso hoje? Porque há algumas semanas eu presenciei um assédio à uma menina (não darei detalhes sobre o fato, mas já está tudo bem). A minha criança interior gritou de ódio! Isso ainda acontece, nas ruas, na internet, nos lares, igrejas, escolas, em todos os lugares… Com isso, esse texto estava engasgado na minha garganta.

Eu hoje reconheço o assédio que vivia, a pedofilia que me rondava e o quão danoso isso era. Mas quantas de nós tomou essa consciência? Quantas de nós silencia isso até hoje e nunca se deu conta? Quantas de nós ainda está vulnerável e perpetuando o comportamento machista e opressor que viola nossas meninas?

Falar sobre beleza, padrões, sexualidade e direitos é uma obrigação legal e social que precisamos levar a sério em todas as esferas. Já avançamos muito, mas não podemos, não temos o direito de parar. Só assim vamos conseguir gerações que não normalizem o que já deveria estar banido da nossa sociedade.

Um abraço bem apertado em todas as mulheres e suas crianças interiores que sentiram algum incômodo ao ler esse texto. Não estamos sozinhas!

por Marcia Marques

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